TOCO Y ME VOY
A expressão "toco y me voy", utilizada em referência ao futebol argentino, descreve o lance no qual o jogador passa a bola a um companheiro e se desloca rapidamente, tornando-se uma opção para recebê-la mais adiante. Tal jogada implica alguns requisitos. Primeiro, a objetividade. O futebol brasileiro, tão afeito a dribles desnecessários, nem sempre permite um eficiente "toco y me voy". Segundo, para que a jogada funcione é preciso que quem recebe a bola tenha talento para dominá-la, raciocinar com rapidez, vislumbrar a melhor opção e entregá-la redondinha logo ali na frente. Claro, pode também, prerrogativa dos grandes craques, não devolver a bola e sair driblando meio time para fazer o gol.
Craque de primeiríssima linha, Augusto Nunes dispensa apresentações. Um dos maiores nomes do jornalismo brasileiro, é também um velho e querido amigo. Esta crônica, escrita há alguns anos, é um de seus mais belos textos.
Toco y me voy.
A VOZ DOS OLHARES
Augusto Nunes
Na primeira noite do ano, estou de novo no quarto que ainda é meu na casa de minha mãe. Lá estão os quatro avós, alojados em retratos nas paredes. Percorreram distintas trajetórias, mas todos se assemelham nos olhares. São sisudos, severos, solenes. Parecem quase tristes de tão graves. Faz pouco que nos juntamos para o convívio negado pelas trapaças da vida. Antônio, Honória e Emílio sequer me viram nascer. E eu nem tinha 12 anos quando Amabile me deixou órfão dos pais de meus pais.
Não têm sido tão freqüentes essas reuniões entre um neto e os avós que não pôde conhecer. Então nos tornamos passageiros de noturnas travessias que confirmam, nos muitos diálogos mudos, a eloqüência do silêncio. Nenhuma contradição: vozes de almas e olhares não são coisa para os tímpanos. Emitem ondas, não sons. E só o coração sabe ouvi-las.
Antônio Nunes da Silva, catarinense bonito, foi o primeiro a chegar. Era pouco mais velho que o neto. Como o tempo não existe para quem vive em retrato, o avô de 40 anos com 40 continua. Hoje o mais velho sou eu. Os olhos claros de Antônio são tão claramente verdes que é possível ver-se o verde no retrato em preto e branco. A expressão confirma o raro equilíbrio dos que preferem a paz sem jamais fugir à guerra, dos que mantêm a mão estendida mas adivinham a hora de fechá-la para o soco ou levá-la ao gatilho.
Honória Gonçalves veio em seguida, para o demorado reencontro. Não é bela. Tem só vinte e poucos anos (e não verá muitos mais, murmura a demasia do branco que lhe envolve as pupilas). Os sertanejos sabiam que gente assim morre moça, como cedo morreria a sertaneja paulista: com trinta anos de vida e mil de melancolia. A fisionomia exprime a coragem dos que aprendem a suportar quaisquer dores, mesmo a iminência do fim, com a altivez sem bravatas e a bravura sem rompantes das mulheres do sertão.
Cedo também morreria o plácido austríaco Emílio Menon. No retrato que o aprisiona, parece recém-saído de alguma cervejaria dos grotões da Baviera. O rosto gordo e rosado lembra cara de dono. O olhar afirma o contrário. É o olhar guloso de quem prepara o ataque, com a contrição do devoto, a procissões inteiras de copos. Do homem que sempre ergue, quando o crepúsculo chega, um brinde a todas as noites.
É o mais recente dos hóspedes. Chegou logo atrás de Amabile Zamarioli, que nunca foi só retrato. Morta, seguiu vivendo na memória de quem pôde, graças a ela, saber como é ter avó. As maçãs salientes realçam o desenho perfeito do rosto. Suave como o prenome, muito antes de Guevara aprendeu a endurecer sem renunciar à ternura, como os tantos órfãos da Itália que souberam resistir ao exílio decretado pela fome incontornável. Os que empreenderam a viagem indesejada e sem volta sem revogar o sorriso.
O verde azulado dos olhos dessa avó italianíssima convida a idéias eugenicamente adúlteras. Se ela tivesse trocado Emílio pelo outro avô, como seria o azul-verde dos olhos de algum menino fruto de Antônio e Amabile? Já tratamos desse assunto em nossas conversas na madrugada. E de tantos outros.
Gosto de ouvi-los contar como encontraram caminhos onde nem trilhas havia, e cruzar montanhas, matas e mares na dura perseguição a Eldorados camuflados nos confins do imaginário. Falamos do Brasil, da cidade, de assuntos de família. Tratamos de virtualmente tudo, ficamos bastante loquazes. Não foi assim na noite do último reencontro.
“Boa noite”, murmuro ao chegar. “Não será”, responde em coro a voz dos olhares. Todos me contemplam estranhamente calados. Então me dou conta da profunda mudança que impõe quietude. Como em tantos janeiros, estamos no mesmo quarto na casa da minha mãe. Mas desta vez a mãe já não há.
Publicado originalmente no Jornal do Brasil em 25 de janeiro de 2004.
A expressão "toco y me voy", utilizada em referência ao futebol argentino, descreve o lance no qual o jogador passa a bola a um companheiro e se desloca rapidamente, tornando-se uma opção para recebê-la mais adiante. Tal jogada implica alguns requisitos. Primeiro, a objetividade. O futebol brasileiro, tão afeito a dribles desnecessários, nem sempre permite um eficiente "toco y me voy". Segundo, para que a jogada funcione é preciso que quem recebe a bola tenha talento para dominá-la, raciocinar com rapidez, vislumbrar a melhor opção e entregá-la redondinha logo ali na frente. Claro, pode também, prerrogativa dos grandes craques, não devolver a bola e sair driblando meio time para fazer o gol.
Craque de primeiríssima linha, Augusto Nunes dispensa apresentações. Um dos maiores nomes do jornalismo brasileiro, é também um velho e querido amigo. Esta crônica, escrita há alguns anos, é um de seus mais belos textos.
Toco y me voy.
A VOZ DOS OLHARES
Augusto Nunes
Na primeira noite do ano, estou de novo no quarto que ainda é meu na casa de minha mãe. Lá estão os quatro avós, alojados em retratos nas paredes. Percorreram distintas trajetórias, mas todos se assemelham nos olhares. São sisudos, severos, solenes. Parecem quase tristes de tão graves. Faz pouco que nos juntamos para o convívio negado pelas trapaças da vida. Antônio, Honória e Emílio sequer me viram nascer. E eu nem tinha 12 anos quando Amabile me deixou órfão dos pais de meus pais.
Não têm sido tão freqüentes essas reuniões entre um neto e os avós que não pôde conhecer. Então nos tornamos passageiros de noturnas travessias que confirmam, nos muitos diálogos mudos, a eloqüência do silêncio. Nenhuma contradição: vozes de almas e olhares não são coisa para os tímpanos. Emitem ondas, não sons. E só o coração sabe ouvi-las.
Antônio Nunes da Silva, catarinense bonito, foi o primeiro a chegar. Era pouco mais velho que o neto. Como o tempo não existe para quem vive em retrato, o avô de 40 anos com 40 continua. Hoje o mais velho sou eu. Os olhos claros de Antônio são tão claramente verdes que é possível ver-se o verde no retrato em preto e branco. A expressão confirma o raro equilíbrio dos que preferem a paz sem jamais fugir à guerra, dos que mantêm a mão estendida mas adivinham a hora de fechá-la para o soco ou levá-la ao gatilho.
Honória Gonçalves veio em seguida, para o demorado reencontro. Não é bela. Tem só vinte e poucos anos (e não verá muitos mais, murmura a demasia do branco que lhe envolve as pupilas). Os sertanejos sabiam que gente assim morre moça, como cedo morreria a sertaneja paulista: com trinta anos de vida e mil de melancolia. A fisionomia exprime a coragem dos que aprendem a suportar quaisquer dores, mesmo a iminência do fim, com a altivez sem bravatas e a bravura sem rompantes das mulheres do sertão.
Cedo também morreria o plácido austríaco Emílio Menon. No retrato que o aprisiona, parece recém-saído de alguma cervejaria dos grotões da Baviera. O rosto gordo e rosado lembra cara de dono. O olhar afirma o contrário. É o olhar guloso de quem prepara o ataque, com a contrição do devoto, a procissões inteiras de copos. Do homem que sempre ergue, quando o crepúsculo chega, um brinde a todas as noites.
É o mais recente dos hóspedes. Chegou logo atrás de Amabile Zamarioli, que nunca foi só retrato. Morta, seguiu vivendo na memória de quem pôde, graças a ela, saber como é ter avó. As maçãs salientes realçam o desenho perfeito do rosto. Suave como o prenome, muito antes de Guevara aprendeu a endurecer sem renunciar à ternura, como os tantos órfãos da Itália que souberam resistir ao exílio decretado pela fome incontornável. Os que empreenderam a viagem indesejada e sem volta sem revogar o sorriso.
O verde azulado dos olhos dessa avó italianíssima convida a idéias eugenicamente adúlteras. Se ela tivesse trocado Emílio pelo outro avô, como seria o azul-verde dos olhos de algum menino fruto de Antônio e Amabile? Já tratamos desse assunto em nossas conversas na madrugada. E de tantos outros.
Gosto de ouvi-los contar como encontraram caminhos onde nem trilhas havia, e cruzar montanhas, matas e mares na dura perseguição a Eldorados camuflados nos confins do imaginário. Falamos do Brasil, da cidade, de assuntos de família. Tratamos de virtualmente tudo, ficamos bastante loquazes. Não foi assim na noite do último reencontro.
“Boa noite”, murmuro ao chegar. “Não será”, responde em coro a voz dos olhares. Todos me contemplam estranhamente calados. Então me dou conta da profunda mudança que impõe quietude. Como em tantos janeiros, estamos no mesmo quarto na casa da minha mãe. Mas desta vez a mãe já não há.
Publicado originalmente no Jornal do Brasil em 25 de janeiro de 2004.
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