REPORTAGEM DE CAPA
NÃO É PELOS 20 CENTAVOS
Atentado
terrorista em Paris expôs uma realidade amarga: a liberdade de expressão está
longe de ser unanimidade, mesmo no mundo ocidental
Tão logo se espalhou a notícia do ataque
terrorista contra o jornal satírico Charlie Hebdo, milhões de pessoas em todo o
mundo começaram a atualizar sua foto de perfil nas redes sociais com um banner
de fundo preto e a expressão “je suis Charlie” em letras brancas, um PDF criado
pela própria publicação e postado em seu site logo depois do massacre. O que
parecia se tratar de um posicionamento indiscutível diante do horror acabou por
gerar uma polêmica com a aparição de milhares dispostos a afirmar “eu não sou
Charlie”. Em comum, um
inquietante “sou contra o terrorismo, mas...”. Trata-se de nova adaptação do
clássico caso de culpar a vítima, que, em sua versão mais popular, atribui à
mulher a responsabilidade por ter sido estuprada, afinal, quem mandou usar
roupas curtas, justas ou transparentes? Da mesma forma se poderia apontar o
dedo para o cidadão assaltado e dizer: “Quem mandou andar na rua à noite?”. As
variáveis são infinitas. No caso, quem mandou aquelas chargistas abusados
debocharem de um símbolo do islamismo?
Há várias leituras fundamentais a se
fazer a partir da contenda virtual que se instalou em torno da frase. Para
começo de conversa, como ocorre o tempo todo na internet, muita gente comenta
sobre coisas que não conhece, ou, quando conhece, o faz de modo precipitado, na
ânsia de não perder a onda. Seguramente, 99% das pessoas que adotaram o “je
suis Charlie”, muito antes e além de apoiar integralmente o conteúdo do jornal,
estavam dizendo que “sim, somos todos Charlie na medida em que qualquer ato de
barbárie atinge a todos nós, cidadãos civilizados”. A exemplo do que foi
registrado nas manifestações que sacudiram o Brasil em meados de 2013, “não é
pelos 20 centavos” – alguns dizem que, no fundo era, pois Dilma Rousseff se
reelegeu, mas esta é outra questão.
Muitos sequer faziam ideia de que o
Charlie Hebdo existia, pois seu conteúdo era o que menos importava, e sim seu
direito de publicá-lo. Na trincheira oposta, o desconhecimento sobre o que
criticavam era ainda maior, o que igualmente pouco interessava. Há os que, por
falta de alcance mesmo, não entenderam o significado de se adotar a expressão
“je suis Charlie”. Preocupante é imaginar que outros tantos, quem sabe a
maioria, possa ter entendido.