terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

REPORTAGEM DE CAPA

NÃO É PELOS 20 CENTAVOS
Atentado terrorista em Paris expôs uma realidade amarga: a liberdade de expressão está longe de ser unanimidade, mesmo no mundo ocidental

Tão logo se espalhou a notícia do ataque terrorista contra o jornal satírico Charlie Hebdo, milhões de pessoas em todo o mundo começaram a atualizar sua foto de perfil nas redes sociais com um banner de fundo preto e a expressão “je suis Charlie” em letras brancas, um PDF criado pela própria publicação e postado em seu site logo depois do massacre. O que parecia se tratar de um posicionamento indiscutível diante do horror acabou por gerar uma polêmica com a aparição de milhares dispostos a afirmar “eu não sou Charlie”.  Em comum, um inquietante “sou contra o terrorismo, mas...”. Trata-se de nova adaptação do clássico caso de culpar a vítima, que, em sua versão mais popular, atribui à mulher a responsabilidade por ter sido estuprada, afinal, quem mandou usar roupas curtas, justas ou transparentes? Da mesma forma se poderia apontar o dedo para o cidadão assaltado e dizer: “Quem mandou andar na rua à noite?”. As variáveis são infinitas. No caso, quem mandou aquelas chargistas abusados debocharem de um símbolo do islamismo?

Há várias leituras fundamentais a se fazer a partir da contenda virtual que se instalou em torno da frase. Para começo de conversa, como ocorre o tempo todo na internet, muita gente comenta sobre coisas que não conhece, ou, quando conhece, o faz de modo precipitado, na ânsia de não perder a onda. Seguramente, 99% das pessoas que adotaram o “je suis Charlie”, muito antes e além de apoiar integralmente o conteúdo do jornal, estavam dizendo que “sim, somos todos Charlie na medida em que qualquer ato de barbárie atinge a todos nós, cidadãos civilizados”. A exemplo do que foi registrado nas manifestações que sacudiram o Brasil em meados de 2013, “não é pelos 20 centavos” – alguns dizem que, no fundo era, pois Dilma Rousseff se reelegeu, mas esta é outra questão.

Muitos sequer faziam ideia de que o Charlie Hebdo existia, pois seu conteúdo era o que menos importava, e sim seu direito de publicá-lo. Na trincheira oposta, o desconhecimento sobre o que criticavam era ainda maior, o que igualmente pouco interessava. Há os que, por falta de alcance mesmo, não entenderam o significado de se adotar a expressão “je suis Charlie”. Preocupante é imaginar que outros tantos, quem sabe a maioria, possa ter entendido.

Em se tratando de liberdade de expressão, não pode haver “mas”, qualquer restrição é, por definição, cerceamento a esta liberdade. Tampouco o “mas” é aceitável como manifestação de uma prática tão odiosa quanto a perpetração de um ato bárbaro: a relativização de um ato bárbaro. É assustador constatar a existência de um número tão expressivo de pessoas que, guiadas por preceitos religiosos, falta de informação, preconceito, moralismo falso ou verdadeiro, seja pelo que for, são capazes de apoiar a chacina, por um grupo fanático munido de fuzis, de homens armados com canetas, quem sabe dispostos a disparar uma rajada mortal de nanquim, ou perfurar o inimigo a golpes de lapiseira.