sexta-feira, 4 de julho de 2008

BOM FIM DE SEMANA

Fiquem com Ingrid e Humphrey em Casablanca, enquanto o tempo passa.

Velhas imagens

Em um dos primeiros registros fotográficos de minha existência apareço de tiptop claro e quente, gorro de lã, sentado em um sofá escuro de tecido pesado. Provavelmente fui ajeitado várias vezes até conseguir me manter naquela posição o tempo suficiente para meu pai fazer a foto. Ainda assim, minha mãe teve de se esgueirar por trás do sofá e segurar a gola de meu macacão. Tenho o olhar perplexo dos bebês quando convocados a ficarem quietos por um breve instante enquanto os adultos acionam um mecanismo incompreensível.

Em outro instantâneo estou de camiseta sem mangas, branca e com o escudo do Grêmio no meio, sentado em um pedaço de tecido ou papel num montinho de grama em meio às lajes da calçada. Estou próximo do meio-fio, cercado por outros tufos de capim, e atrás de mim há uma armação de varetas daquelas destinadas a sustentar o crescimento de uma árvore recém-plantada. Olho para a esquerda. Seria minha mãe a despertar minha atenção enquanto meu pai produzia a foto? Ou quem sabe fosse de minha avó, ou de uma vizinha curiosa com a montagem da cena, aquele meio corpo feminino de pé, o equilíbrio mantido por um leve cruzar de pernas, no canto superior esquerdo, vestindo saia branca plissada ou pregueada logo abaixo do joelho, supostamente recostada ao muro baixo de nossa casa, ou da de um vizinho, próxima a um portão escuro, depois do qual se seguiam um muro, outra entrada, uma parede branca e mais uma porta escura. Talvez fosse minha mãe, mas, neste caso, de quem seria aquela mão direita estendendo-se em minha direção a pequena distância, pronta para me amparar caso eu desabasse para o lado certo, ou lado errado, o lado da rua de paralelepípedos? A mão surge à meia altura à direita da foto, cortada tão logo acaba a extensão dos dedos.

Registro posterior me mostra recostado, acuado talvez seja um termo mais preciso, à porta da frente da casa de madeira. A porta é amarela, a parede laranja forte – ou coral, como se dizia –, mas nada disso aparece na foto em preto-e-branco – como as outras duas, sendo que a do sofá ganharia versão colorizada. Eu já não era bebê, mas era bem pequeno. Estava zangado, chorava de raiva enquanto meu pai registrava minha fúria e fraqueza. Lembro de ter decidido fugir de casa, saíra pela frágil porta dos fundos, contornara o pátio lajeado pelo lado esquerdo, mais largo, que conduzia à garagem, e chegara até a frente, mas não passara pelo portão baixo de ferro. Ainda que tivesse altura para escalá-lo, estava de pijama, não carregava roupas, água, comida ou dinheiro, e mesmo uma criança sabe que não se vai longe assim. Era uma manhã de domingo. Tomara uma atitude intempestiva, e agora não sabia o que fazer. Havia jurado nunca mais voltar àquela casa ou àquela gente que me magoara. Não podia retroceder, mas também não tinha como seguir adiante. Para completar, meu pai eternizava minha humilhação. E ainda por cima chovia.

Em outra foto, esta bem menos dramática e de muito tempo depois, tenho 14 anos, sou magro a não poder mais, os cabelos longos e cacheados. Uso relógio no pulso esquerdo – embora não seja canhoto, pouco depois passei a colocá-los no lado direito, o que mantenho até hoje. Deve ser um Sorel que herdei de meu avô, creio que ainda não ganhara meu primeiro relógio zero quilômetro, um Technos dourado presenteado por meio pai, com estojo vermelho forrado de cetim branco, que usei até o perder em assalto à mão armado, numa madrugada fria, já no início dos anos 80.

Visto-me com o alegre excesso dos ’70. Camiseta branca de mangas curtas, de malha canelada, com estampa em pequenas flores nas cores rosa e verde, e um cordão na gola, transformado em pequeno tope como o de um sapato amarrado. As calças são de brim tergalizado, rosa quase choque – chamava-se rosa antigo –, boca-de-sino, cós alto e bem justa, feita na costureira dos rapazes do bairro, que confeccionara para mim outras calças iguais em lilás, azul calipso e bordô. Estou encostado no Gordini de meu pai, placas laranja AJ-9757. O carro é branco, tem sinais de lanternagem no lado esquerdo, oposto ao qual me recosto. Estamos, o Gordini e eu, na alameda de um parque, o piso é uma mistura de paralelepípedo e chão batido, o meio-feio é de pedras pintadas de cal, há árvores aos lados e ao fundo, onde também aparece um Fusca branco estacionado na transversal, e mais ao fundo ainda os morros a emoldurar a cidade.

São apenas fragmentos, fotos encontradas ao acaso, registros de uma vida, coisa pouca, mas nunca coisa pouca. Basta uma breve olhada para o momento retornar em todos os detalhes. Por isso uma fotografia jamais será substituída por qualquer outro meio, como nada substitui um livro. E nada substitui uma vida.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Plantão de notícias

Agora, na barra lateral deste Blog, você pode acompanhar as mais recentes notícias do Brasil e do mundo por meio do G1, o portal da Globo.

TOCO Y ME VOY

Senhoras e senhores, a conquista da Copa de 58 em mais um belo texto de Augusto Nunes. Como preliminar, o vídeo da decisão contra a Suécia.
Toco y me voy.

TRÊS SORVETES E UMA TAÇA

Augusto Nunes

"Você não vai ouvir o jogo do Brasil? Pensei que gostasse de futebol", estranhou minha mãe quando avisei que estava de saída para a sorveteria. Ela vai ouvir o jogo contra a Suécia?, também estranhei ao vê-la de pé a um metro do rádio, com a caçula no colo e querendo saber dos dois filhos sentados no sofá como era mesmo o nome do juiz. Pensei que não gostasse de futebol.

Eu gostava. Aos 8 anos, ia me entendendo melhor com a bola, meu pai contara que eu era torcedor do Palmeiras e tinha decorado antes da estréia contra a Áustria os nomes dos 22 craques da Seleção. Gostava mais de jogar futebol que de ouvir, mas vinha acompanhando as batalhas da pátria em chuteiras na Guerra da Suécia pelo rádio da minha avó, uma imigrante italiana que se juntara à torcida brasileira ao descobrir que o elenco incluía um Bellini e um Mazzolla. Sabia que o time canarinho estava fazendo bonito, que Garrincha destroçara o futebol científico da comunistada russa e que, naquele domingo, o duelo em Estocolmo decidiria não só a Copa, mas também diria se o Brasil tinha jeito.

O que não sabia é que seriam declarados traidores da nação em perigo, e sumariamente condenados à execração perpétua, sem direito a recursos julgados em instâncias superiores ou apelações a tribunais internacionais, todos os brasileiros, incluídos os recém-nascidos e os mortos do mês, os índios da Amazônia e os imigrantes procedentes de remotíssimas paragens, as normalistas oferecidas e as carmelitas descalças, os inimputáveis em geral e os loucos de hospício em particular, todos os brasileiros que, no dia 19 de junho de 1958, pensassem em qualquer outra coisa além da conquista da Copa. Não sabia disso. E eu também gostava muito de sorvete. E acordei pensando não nos dribles de Garrincha, mas num palito de limão.

“Volto antes da metade do primeiro tempo”, comecei a explicar quando fui aparteado por um dos irmãos. “Não dá, são quinze quarteirões. Fala logo que não gosta de futebol”, provocou. Acusei-o de ter passado na casa de um amigo a tarde do duríssimo combate contra o País de Gales. “Só que ouvindo o rádio e jogando futebol-de botão, não tomando sorvete”, ele mandou no ângulo. Esperei em vão pela cobertura da velha Amabile, sentada na cadeira de balanço. Ela continuou olhando o rádio. “Esse moleque é meio bobo”, resumiu o pensamento geral meu irmão mais velho. Estava pronto para entrar de carrinho quando meu pai entrou em casa e os dois times em campo. Aproveitei a distração do inimigo, fingi que recuava para proteger a retaguarda e invadi o quarto. Precisava de uma camisa. O dia estava meio frio.

O inverno ia chegando ao meio, e ainda havia nos sertão paulista outras estações além do verão que acabaria eternizado pelo oceano de cana que engoliu primeiro as plantações de café, depois os laranjais e enfim, quando já não restavam campos a afogar, até os casarões das fazendas, as tulhas e os canteiros, as hortas e os quintais. Vesti uma camiseta verde, sem distintivo nem número nas costas. Continuei descalço. E com aquele calção detestável que todos os menores de 10 anos usavam, feito pelas mães e tias com a amputação, milímetros acima do joelho, das pernas de alguma calça de adulto severamente castigada pelo tempo.

Se me tratassem com mais cortesia, eu talvez tivesse deixado o sorvete para depois do jogo. Sob pressão é que não fico em casa mesmo. E não vou trazer nem um palito para aquela gente. Nem para a avó, radicalizei no momento em que o juiz, um francês chamado Messiê Guiguê conforme a voz no rádio, apitou o começo da partida e da caminhada rumo à sorveteria. E então notei a paisagem: não havia ninguém na rua da minha casa.

Nem na General Glicério nem Marechal Deodoro, espantei-me no segundo minuto da final e na primeira esquina. Nem em qualquer outra rua de Taquaritinga, fiquei assustado aos 4 do primeiro tempo, quando cheguei ao cruzamento da General Glicério com a Duque de Caxias junto com o gol da Suécia marcado na calçada da casa da família Curti e transmitido pelo locutor, sem entusiasmo, pelo rádio da sala do pai do João Perrone.

Haviam sumido das calçadas os quase 10 mil habitantes, e todos os carros estavam nas garagens dos donos ou encostados no meio-fio. O único sinal de vida era a voz do locutor. Melhor desistir, resolvi. Caminhei com Didi, ambos lentamente, ele em direção do meio de campo, com a cabeça erguida, a bola na mão esquerda e tranqüilizando o time, eu de volta para casa, cabisbaixo, de mãos abanando e tentando preparar-me para a capitulação humilhante que só não foi consumada porque, aos 9 minutos, Vavá empatou na varanda dos Benatti, a última antes da esquina com a Marechal Deodoro.

Todo mundo estava ouvindo o jogo, confirmou a universalização da voz do locutor que se sobrepunha ao berreiro coletivo, a mesmíssima voz agora vinda de todos os pontos cardeais, do céu e da terra, multiplicada por dezenas, centenas, milhares de aparelhos ligados na mesma estação, atravessando todas as janelas que todas as famílias haviam escancarado para que até os jardins, os pomares ou algum transeunte desavisado testemunhassem, sem perderem um único centésimo de segundo, o triunfo da Seleção incomparável. E então os ouvidos atentos como os olhos do goleiro Gilmar captaram o oportuníssimo recado sonoro: a barulheira do lado ocupado só por casas era bem maior que a do outro, onde ficavam a sede do Clube Imperial, o prédio da Caixa Econômica e dois bares. Todos estavam fechados.

É só seguir o caminho das casas, deslumbrei-me ao compreender que poderia tomar sorvete e ouvir jogo, e depois desconcertar a caipirada lá na sala de visitas com o mistério da minha ubiqüidade, porque nenhum parente sabia do que eu acabara de saber e não contaria nem sob tortura. Montei o novo plano com a serenidade de um Feola. O roteiro redesenhado pelas circunstâncias agora passaria ao largo de clubes, repartições públicas, associações, bares ou botequins, estabelecimentos comerciais, escolas – tudo que pudesse estar fechado ou desprovido de aparelhos de rádio.

Subi outra vez pela General Glicério, virei à esquerda com a elegância sutil de Nilton Santos na Duque de Caxias, arranquei rente à lateral direita como Djalma Santos, parei feito Orlando diante do meia-direita francês na esquina com a Campos Salles, virei o jogo para a direita como Zito e corri para o abraço quando Vavá desempatou debaixo da segunda janela do doutor Luizão.

O Brasil descia para o vestiário e eu driblava o terreno da Força e Luz para virar à a esquerda na esquina da Campos Salles com a Visconde do Rio Branco. O jogo estava no intervalo quando enxerguei as portas da Sorveteria do Abbud. Hoje é meu dia, avisaram as portas abertas. Além dos quatro homens sentados na mesa perto do rádio, que nem me olharam, lá estava um dos donos, o irmão mais alto e ainda mais magro, acho que se chamava Elias, que ouviu o pedido sem deixar de ouvir o comentarista.

Antes de terminar o palito de limão, descobri que estava sintonizado na Cadeia Verde-Amarela, liderada pela Bandeirantes, e que o primeiro tempo fora transmitido por Pedro Luiz. Edson Leite narraria o segundo, soube no palito seguinte, outra vez de limão. A voz agora menos veloz, mais grave e igualmente soberba avisou que estavam começando os 45 minutos que decidiriam a sorte do Brasil na Copa do Mundo. Pedi uma casquinha de abacaxi, só para variar, levantei-me certo de que a taça já era nossa e fiquei com cara de campeão no momento do golaço de Pelé ao lado da casa do Turqueta, pai do Zé Ditão e do Tonho Mariano, no fim do primeiro quarteirão do caminho de volta.

Zagallo encaçapou de bico perto da jabuticabeira da minha professora do jardim da infância, nem me abalei com o segundo da Suécia, marcado em frente do casarão da família Mantese em clamoroso impedimento, como assinalou Edson Leite. Resolvi ganhar tempo para entrar em casa no apito final, mas nem pensei em administrar o tempo, isso só existiria no futuro, não naquele junho em que o negócio era jogar pra frente, ou ficar driblando meio mundo, e por isso resolvi aproveitar a falta de espectadores para reproduzir os melhores lances. Saí pela direita como Garrincha na esquina da Duque de Caxias com a General Glicério, percebi que voltara ao ponto de partida depois da quarta arrancada, sempre pela direita, e achei mais sensato avançar sem pressa como Didi, ultrapassei o Chevrolet rabo de peixe do doutor Luizinho Barbosa, encobri um Mercury preto com o chapéu sem bola igualzinho ao de Pelé a caminho do quinto gol, estufei a rede no portão de casa e entrei na sala gritando “Brasil!”

"O único do mundo que não ouviu o jogo", debochou o mais velho. "Não gosta de futebol", o outro pegou-me de novo no tornozelo. Revidei com um elogio ao sorvete, a narração dos cinco gols, um sorriso de campeão do mundo e aquele sorriso no olhar só concedido a quem, ouvindo o rádio, viu como jogavam os heróis de 1958".

Publicado originalmente no Jornal do Brasil

terça-feira, 1 de julho de 2008

JORNALISMO

Ensaio sobre a leitura

A história da leitura registra que os novos meios sempre causaram pânico nos resistentes a mudanças tanto quanto sentimentos alvissareiros nos arautos da modernidade. Invariavelmente, ambos tiveram de recuar até o meio-de-campo e recomeçar do zero a zero. Avanços como a internet, o computador, a máquina de escrever, os sistemas de impressão ou da troca dos rolos de pergaminho pelas folhas de papel, são meros instrumentos, subordinados, portanto, às decisões humanas sobre suas aplicações. Mais amplamente, dependem de mecanismos capazes de promover a inclusão em massa, sem a qual o abismo entre consumidores e excluídos é ampliado.

Trata-se, “apenas” e desde sempre, de uma questão de distribuição justa de riquezas. Que nem seja o ideal, mas o mínimo necessário para que a humanidade usufrua como um todo dos avanços obtidos nos milhares de anos de presença do homem sobre a Terra. Uma história feita de lutas, conquistas e derrotas, mas, sobretudo, de exclusão. O impacto dos novos modos de leitura, amplificado pela rede mundial de computadores, chama a atenção pela alta tecnologia, mas é assim desde Gutenberg, sendo que mesmo ele, embora justamente convertido em ícone da massificação da leitura graças à invenção da imprensa, ou do meio físico que a permitiu vicejar, não tenha alcançado com sua criação o paraíso da leitura em massa que possa ter vislumbrado num primeiro momento.

Conforme lembra o pesquisador e escritor inglês Martyn Lyons em A Palavra Impressa – Histórias da leitura no século XIX, “a imprensa não foi necessariamente revolucionária para o campesinato europeu, exceto no sentido de que a palavra impressa oferecia novos modos de dominação dos governos, aristocratas, religiosos, advogados e coletores de impostos que oprimiam os camponeses”. Uma das trágicas ironias do desenvolvimento dos povos é o distanciamento cada vez maior entre os que possuem e os que não possuem, reforçado a cada degrau tecnológico que se escala.

O poder da palavra, em especial a escrita, sempre foi utilizado como elemento coercitivo pelos poderosos – e de libertação pelos raros oprimidos que logravam atingir a inclusão –, num desigual jogo de palavras, como no diálogo de Alice no País das Maravilhas:
– A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem tantas coisas diferentes.
– A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.

A diferença entre o analfabeto e o alfabetizado era menos escandalosa quando só tínhamos papiros. A abundância de oferta de leitura existente hoje escancara de forma avassaladora o abismo entre incluídos e excluídos como jamais ocorrera na história. Embora a frase “como jamais ocorrera na história” possa parecer óbvia, uma vez que a ordem natural da vida indica contínuo crescimento e aperfeiçoamento, ela é pertinente neste caso porque todos os avanços técnicos anteriores da escrita, por mais importantes que fossem, limitavam-se ao ato de escrever e de ler, caso dos livros em folhas de papel, a tipografia, a máquina de escrever e etc.

Muito mais do que substituir totalmente o livro em papel, passo improvável desta evolução, ao menos por um ainda longo período, o computador e seu mais revolucionário aplicativo, a internet, substituíram a ida ao banco, ao correio ou mesmo a lojas e supermercados, e os usuários muitas vezes executam tais tarefas em paralelo à leitura, em sites, das notícias do dia, de estudos acadêmicos e textos dos mais variados estilos, fins e dimensões. O analfabeto, ou o analfabeto funcional, não apenas deixa de ler determinadas obras por falta de acesso a livros, de todo modo já um prejuízo imenso, como fica de fora do clube cujos sócios usufruem de uma série de facilitadores do cotidiano moderno, decisivos em sociedades violentas, de trânsito pesado e de alucinada correria atrás do sustento, aos quais sobra, até, mais tempo para a leitura. Ter um computador conectado à internet é sonho impossível para milhões de pessoas que não sabem de onde sairá o próximo prato de comida. Mesmo na hipótese de conseguir se alfabetizar, como ter acesso aos meios mais modernos?

Ainda que ignoremos o computador como elemento de leitura no sentido mais amplo, atitude no mínimo imprudente, mesmo assim os novos alfabetizados não teriam como pagar pelos livros, ou estariam longe demais das bibliotecas, problema que se agrava em vez de se amenizar. Tal quadro tende a piorar em escala exponencial até que se reduzam as desigualdades de maneira significativa. As grandes bibliotecas em séculos passados eram, sintomaticamente, fechadas ao público. A Ambrosiana, de Milão, surpreendia os visitantes por permitir acesso aos livros, conforme relata Peter Burke em Variedades de História Cultural:

“É claro que nossos visitantes não esperavam que uma biblioteca tão importante fosse realmente acessível. Em Oxford, estrangeiros não podiam tomar notas sobre livros na Biblioteca Bodleiana, a não ser que fossem supervisionados por um bacharel da universidade. Em Londres, a famosa Sala de Leitura do Museu Britânico, completa com escrivaninhas e canetas, só foi aberta ao público em meados do século XIX. Pelo menos dessa vez, o mundo de cabeça para baixo revelou ter suas vantagens (ironia do autor a respeito da notória informalidade italiana).”

Os incluídos, primeiro na sociedade de consumo pura e simplesmente, depois na sociedade de consumo cultural, estágio mais avançado de uma civilização e um de seus mais potentes legitimadores, por certo nem sempre aproveitam as vantagens da inclusão, enviando e recebendo e-mails permeados de siglas, códigos e abreviaturas, matando a velha e boa carta que, ao contrário, deveria ter sido revigorada pelas facilidades da internet. São os auto-excluídos da linguagem elegante, do português, não castiço, mas o básico mesmo. Poucos estão dispostos, por preguiça ou incompetência, a percorrer labirintos de frases, parágrafos, concordâncias, crases, próclises e ênclises. É mais fácil invocar a modernidade.

Para quem já não lia muito, apesar do livre acesso, em especial econômico, ao livro, o e-mail padrão pode ter efeitos devastadores. Há quem diga que estamos diante de uma nova e interessante forma de linguagem. Creio que podemos abrir mão desta modernidade. Tecnologia de ponta é uma coisa, linguagem não-culta é outra, e sequer serve o pretexto de que é a linguagem do povo. Povo mesmo está fora dessa, infelizmente. Ao menos por um bom tempo.


Publicado originalmente no site coletiva.net
Como é fácil prender bêbados

Em dez dias da nova (e excessiva) lei, quase 300 pessoas foram presas por dirigir alcoolizadas. Passados 15 dias, nenhum bandido paisano foi preso pela morte dos três rapazes no Morro da Providência.