sábado, 27 de setembro de 2014

GRANDES NOMES
Norman Mailer, o best-seller provocador

Primeiro, leiam o início de Os Nus e os Mortos:


 “Ninguém podia dormir. Quando amanhecesse, as embarcações de assalto seriam lançadas ao mar, e uma primeira vaga de soldados transporia a rebentação e atacaria a praia de Anopopei. No navio, no comboio inteiro, predominava a certeza de que dentro de poucas horas alguns deles estariam mortos.

“Um soldado estendido ao comprido no beliche, os olhos fechados, continua inteiramente desperto. Em torno de si, como o sussurro da rebentação, escuta os murmúrios dos homens em seus cochilos intermitentes. – Não farei, não farei – grita alguém no meio de um sonho. O soldado abre os olhos. Esquadrinha lentamente o porão e seu olhar se perde no emaranhado das marcas, dos corpos nus e do equipamento bamboleante. Conclui que precisa ir à latrina. Praguejando, contorce-se todo até conseguir sentar-se, as pernas penduradas para fora do beliche, e apóia as costas arqueadas no cano de ferro da maça de cima. Suspira, apanha os sapatos que amarrou a um pilar e calça-os vagarosamente. Seu beliche é o quarto numa fila de cinco. Desce inseguro na semi-obscuridade, receando pisar algum dos companheiros que ocupam as maças de baixo. No soalho, envereda por um labirinto de sacos e mochilas, tropeça uma vez num fuzil e avança para a porta do tabique. Atravessa outro alojamento, cujo corredor também está atravancado, e afinal chega à latrina.

“Lá dentro o ar está impregnado de vapor. Mesmo agora alguém está utilizando o único chuveiro de água doce, o qual vem sendo disputado desde o embarque das tropas. O soldado passa pelos jogos de dados nos chuveiros de água salgada, que ninguém usa, e acocora-se nas tábuas úmidas e rachadas da latrina. Não trouxe cigarros e fila de um sujeito sentado ali perto. Enquanto fuma, observa o piso negro molhado, coberto de guimbas, e ouve a água correr na caixa da privada.”

Com apenas 25 anos de idade, Norman Mailer publicou, em 1948, Os Nus e os Mortos (The Naked and the Dead), um portentoso relato jornalístico tecido a partir de suas experiências na Segunda Guerra Mundial. A obra tornou-se estrondoso sucesso de público e crítica, deu início a uma trajetória de sucesso e começou a inscrevê-lo na galeria dos grandes do new journalism, ao lado de nomes como Truman Capote, Gay Talese, John Hersey e Tom Wolfe.

Norman Kingsley Mailer nasceu em Long Branch, Nova Jersey, em 31 de Janeiro de 1923, e morreu em Nova York em 10 de novembro de 2007, aos 84 anos. Filho de imigrantes judeus de classe média, aos 16 anos ingressou na faculdade de engenharia aeronáutica em Harvard, curso ao qual daria seguimento na Sorbonne, em Paris. A despeito de cursar um ofício técnico em duas das maiores universidades do mundo, antes de se graduar combateu na Segunda Guerra em fronts nas Filipinas e no Japão. A acurada percepção do que ocorria à sua volta, a sensibilidade para perceber seus tons e meio-tons e o talento inato para a arte de contar histórias o levaram a escrever Os Nus e os Mortos, cuja aclamação, aliada à confessada paixão, fez o mundo perder um engenheiro, quem sabe brilhante, e ganhar um nome de primeiríssima linha não apenas no jornalismo e na literatura, mas na cultura pop americana de modo mais abrangente.

Forjada a partir de uma obra inaugural extraordinária, equiparada a grandes títulos na literatura de seu país, a carreira de Mailer como escritor tinha tudo para deslanchar sem passar por aqueles estágios intermediários de incertezas e fracassos aos quais mesmo os grandes estão sujeitos. Entretanto, o reconhecimento de seu talento precoce não lhe garantiu a escalada direto ao topo. Ainda que a fama lhe tenha aberto muitas portas, inclusive a de roteirista em Hollywood, nos tempos seguintes acumulou rejeições das editoras e, mesmo o que conseguia publicar, acabava naufragando.

A lenda em torno de seu nome, no entanto, continuaria a ser talhada, não apenas no cinema. Embora Hollywood jamais pudesse ser desprezada – ontem e sempre –, trava-se de uma indústria de peso no entretenimento global e, de certa forma, e em boa parte de seu escopo, de viés quase oficialista, quase chapa-branca no cenário da cultura americana, sobretudo sob o jugo do Macarthismo, naqueles paranóicos anos do auge da Guerra Fria. De temperamento inquieto e dotado de severa mordacidade, Mailer tornou-se um polemista respeitado, e temido, por meio de artigos na publicação alternativa The Village Voice, que ajudou a fundar, e nos quais tecia críticas tão corrosivas quanto verdadeiras ao establishment da América. (Leia a continuação clicando no link abaixo).