quinta-feira, 29 de agosto de 2013


Eliziário de onde?

Chego para uma reunião e me apresento à secretária. Ela pega o telefone e, antes de me anunciar, pergunta: “De onde?” Apenas repito: “Meu nome é Eliziário”. Ela insiste: “Sim, mas, de onde?” Neste meio tempo a chefia já ouvira o diálogo e dissera para ela me deixar entrar. Cenas assim são cada vez mais frequentes em nossa sociedade, e eu confesso que sempre me irritam. No caso de um encontro agendado, basta anunciar o nome. A pessoa solicitada decidirá se quer me ver ou não. Se eu disse apenas o nome, é sinal de que ela me conhece, ou seja, não sou, por exemplo, um vendedor que por acaso bateu àquela porta.

Mas não adianta, a pergunta é insistente: “De onde?” Como não vale a pena me incomodar por isso, às vezes respondo “do Escritório da Informação”, meu “nome jurídico”. Desconfio que poderia dizer “da Astron Plus”, da “Empreendimentos Bevilacqua” ou da “Rocha & Rocha Consultores” e daria no mesmo. Só querem uma pessoa jurídica, algo que prove que eu mereço ser recebido, pois pessoas físicas, sabemos, não merecem a menor confiança.

Poderia dar respostas como “de Porto Alegre”, “de mamãe e papai”, “da grande nação tricolor”, mas a mais simples eu aprendi com o amigo jornalista Jorge Olavo de Carvalho Leite. Há mais de 20 anos, ele já respondia: “De mim mesmo”. Identifiquei na frase uma certa rebeldia contra o mundo dominado pela pessoa jurídica. Eu sou eu, e isso deveria bastar.

Já nem estranharei se, um dia, ao pedir uma pizza por telefone e me identificar, perguntarem:
– Eliziário de onde?
– Como assim, de onde?
– Assim mesmo: Eliziário de onde?
– Mas eu só quero uma pizza.
– Lamento, mas o senhor precisa informar de onde.
– Por que, vocês só entregam para empresas?
­– Não senhor, mas só entregamos para quem é de algum lugar.
– Claro, se não, como achariam o local da entrega, não é mesmo?
– Como, senhor?
– Nada, esquece. Mas por que esta regra?
– Veja bem, nós somos uma empresa séria, com dez anos de mercado, só produzimos pizzas de alta qualidade, e não podemos entregá-las a quem não seja de algum lugar.
– Mas eu sou de algum lugar. Já lhe dei meu nome, endereço, telefone fixo, celular, RG, CPF, nome dos pais e dos avós... 
– Mas não disse de onde.
– Ok, ok. Está bem, eu digo. Sou do... deixa ver, Birô Atuarial Azevedo.
– Lamento, mas não consta em nossos registros.
– Desculpe, eu estava brincando. Sou do Escritório da Informação.
– CNPJ por favor.
­Dou o número. Ela volta em segundos:
– Ok, senhor, seu pedido está liberado. Vamos estar lhe entregando em trinta a quarenta minutos.
– Ótimo, já estava quase perdendo a fome. A propósito, vou querer cervejas também.
– Bem, neste caso, qual a natureza de sua empresa? Quantos funcionários tem? Quanto o senhor pagou de impostos no ano passado?

Publicado originalmente no site Coletiva,net em 23 de agosto de 2005

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Sejamos mais humanos

As redes sociais deram voz a todos, o que é ótimo, mas também levaram ao paroxismo as possibilidades do efeito-manada e se transformaram em cenário ideal para manifestações de histeria coletiva.

A xenofobia é um sentimento feio, além de injusto e, sobretudo, burro. Ainda mais em um país tão fortemente miscigenado, construído com a energia de imigrantes das mais variadas paragens. Incontáveis são também os exemplos de pessoas que aqui aportaram à margem dos grandes processos migratórios, vindas de diversas terras, e daqui fizeram seu lar, não apenas construíram famílias e criaram seus filhos, como contribuíram para tornar o Brasil melhor com a força de seu trabalho e de seu caráter, incluindo muitos e maravilhosos médicos.

Nem é necessário reforçar o argumento com a tese da globalização, pois se trata de algo histórico, que antecede em muito este mundo hoje - felizmente - de poucas fronteiras (ao menos na aparência). Tanto quanto, por óbvio, não vale a apena perder tempo comentando a irracionalidade, ou mera estupidez, de quem hostiliza os médicos cubanos com toda a carga de sordidez que a xenofobia em si carrega.

Igualmente absurda é a onda de ataques aos médicos brasileiros, em sua grande maioria profissionais honestos, éticos e competentes, convertidos por conveniência nos vilões de um sistema de saúde por demais precário, em que eles, muitas vezes, conseguem fazer bem mais do que se imaginaria possível diante de tanta incompetência e desvios de quem deveria dotar tal sistema das condições mínimas para o bom exercício profissional.

Os argumentos de quem é a favor e de quem é contra a vinda de médicos estrangeiros - venham eles de Cuba, da Espanha, da China ou da Lapônia - devem ser examinados com bom senso, pois em ambos os casos há pessoas de bom senso utilizando argumentos de bom senso, embora, também em ambos os casos, suas vozes sejam lastimavelmente sufocadas por outras, as histéricas, que preferem tentar impor sua posição no grito e na agressão.

É claro que há razões de cunho político - como sempre, de ambos os lados - no bate-boca em que se transformou a questão, não sejamos ingênuos. Mas esta é outra discussão. Nada justifica o espírito belicoso do qual tantas pessoas parecem se sentir "obrigadas" a partilhar para serem aceitas por determinados grupos, para firmarem uma posição politicamente correta ou, ao contrário, uma posição politicamente incorreta, embora a maioria seja mesmo formada apenas por tolos querendo aparecer. Gente que por vezes transforma nosso cotidiano ato de dar uma olhada no que rola no FB num exercício de depressão.

Parece difícil, mas é simples e básico: sejamos mais educados, menos preconceituosos (em todas as direções), sejamos mais humanos, como bons humanos costumam ser os melhores profissionais, venham de onde vierem.