domingo, 1 de julho de 2018

  PUBLICADO EM VEJA.COM  
(Meu texto na coluna de Augusto Nunes em 1º de julho de 2018)

CONCERTO PARA ESFERA E PAPEL

Enquanto verifico no celular a programação do dia seguinte na Copa da Rússia, meu pensamento retorna a meados de 1970. A casa de madeira com seus rangeres noturnos e móveis desgastados hospedou uma instigante novidade tecnológica em um fim de semana de frio intenso, suavizado pelo fogareiro a carvão. Meu pai levara serviço para casa e, com ele, uma IBM elétrica de esfera. Aos olhos de um menino de dez anos sem muito contato com as novidades do mundo, a Ferrari das máquinas de escrever, com seu largo e sólido corpo de ferro, sua batida ágil, silenciosa e veloz como nenhuma outra jamais conseguira ser, assemelhava-se a um instrumento dos deuses. Além disso, pensava o menino, o pai devia ser importante na firma se podia levá-la para casa.

O magnífico equipamento chegara acompanhado de caixinhas com base fina e tampa de acrílico em forma de redoma que permitia vislumbrar o conteúdo: em seu interior jazia meia-dúzia de esferas sobressalentes. Ao contrário das outras máquinas de escrever, meros invólucros de plástico recheados de gravetos vacilantes, barulhentos e desencaixantes, com fitas sujas, frágeis e desenroscantes, aquela maravilha permitia a troca da esfera que ia e vinha, vinha e ia sem que nem lhe pudéssemos registrar os movimentos.

Pela primeira vez, e muito antes de o computador doméstico entrar em cena, podia-se variar a tipologia de um texto sem recorrer a uma gráfica. Ou datilografar em itálico, bold, letra cursiva, corpo maior que o usual, sublinhar, bater de novo por cima para reforçar, traçar fios, cercaduras e, com alguma imaginação, até desenhos primitivos, e tudo de maneira limpa, sem borrões ou dedos sujos, pois também a fita, encapsulada como uma VHS, era de natureza superior.

Ouvi atentamente as explicações de meu pai. Ele por certo estava orgulhoso pelo interesse do filho e por ser o guardião, ainda que temporário, daquele verdadeiro tesouro. Esta não era sua única vantagem evidente sobre mim naquele momento. Havia outra: meu pai digitava com os dez dedos, em velocidade absurda, sem em momento algum olhar para o teclado, e nunca errava. Infelizmente, tal habilidade não era genética.

O fim de semana foi de vigília, afinal, o sonho se encerraria na segunda-feira pela manhã. Esperava meu pai fazer uma pausa para me posicionar à frente da máquina colocada sobre a penteadeira convertida em mesa de trabalho. Ao menos não precisava usá-la escondido. Ele não apenas deixava como dava as dicas. De esfera em esfera, descortinava-se para mim o prazer de escrever, editar, diagramar. Em plena Copa do México, na qual o Brasil conquistaria o tricampeonato, produzi um jornalzinho esportivo com direito a tabela de jogos, com espaço para anotação de resultados, cruzamentos e classificação, igual aos carnês de bolso distribuídos como brindes e que faziam tanto sucesso à época.

Incluí manchete, textos, títulos secundários, boxes, tudo que um jornal de verdade contém. A folha de papel de boa gramatura era colocada na horizontal, recurso possível graças à boa largura da máquina, e desenhada como página dupla. Eu usava frente e verso, escrevia em colunas, respeitava as margens e depois dobrava para dar o formato de jornal em tamanho meio A4, ou “meio ofício”, como se dizia então.

Dez anos depois eu me reencontraria com a IBM de esfera como revisor do jornal Zero Hora, utilizando-a para fazer “emendas” enquanto ouvia o zumbido de dezenas de outras, do setor de revisão e da digitação, na sala ao lado. Ainda pretendo ter uma. Como a amante tão desejada que parte ao amanhecer, usei-a, mas jamais cheguei a possuí-la.

Nunca se sabe o exato momento em que tomamos a decisão que muda nossa vida. Mas, se houve um momento preciso em que me tornei jornalista, bem pode ter sido aquele, num fim de semana frio, aquecido pelo fogareiro a carvão e esperando que meu pai interrompesse seu concerto para esfera e papel.

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