sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O DIA EM QUE A TERRA PAROU


REPLAY














A reportagem de capa da revista Veja, em 24 de dezembro, tratava do genocídio em Darfur; na celebração do nascimento de Cristo, a dramática foto de uma refugiada com o filho no colo em uma alegoria cruel, mas real, da Virgem Maria. Em 7 de janeiro, Veja estampou na capa foto do enterro de uma das centenas de vítimas dos ataques de Israel à Faixa de Gaza.
Mais de dois anos atrás escrevi sobre Darfur e sobre o drama dos conflitos de Israel com o Hezbollah, no Líbano. Troque-se Hezbollah por Hamas, e Líbano por Faixa de Gaza, e ambos os textos seguem lamentavelmente atuais.


O genocídio esquecido

Darfur não freqüenta os noticiários com a assiduidade necessária. O chamado “público em geral” nem sabe o que é Darfur que, no entanto, tem sido palco de um genocídio que já dura mais de três anos. Localizado no Oeste do Sudão, a região tem sido alvo de bombardeios aéreos constantes, complementados por ataques terrestres destinados a deixar o mínimo possível de sobreviventes. O número de mortos, de acordo com a ONU, passa dos 200 mil. Estimativas menos otimistas indicam que se aproxima do meio milhão.

As Nações Unidas e os EUA admitem que se trata de limpeza étnica, mas não têm despendido tempo e energias para conter a matança promovida pelo regime fundamentalista de Cartum. Preferem deixar a missão a cargo da União Africana, que designou entre 3 e 7 mil soldados para a tarefa, um efetivo irrisório para a situação.

A pretexto de combate à guerrilha, a Força Aérea sudanesa e a Janjaweed, a milícia oficial, não dão trégua na chacina. Mais de dois milhões de zurgas, termo pejorativo usado pelos opressores, tiveram de deixar suas casas, sendo que 500 mil deles se refugiaram no vizinho Chade, um dos países mais miseráveis do mundo. Muitos morrerão de fome. Os que ficaram em Darfur morrem à média de 20 mil por mês, assassinados ou de fome.

Nesse ritmo, o genocídio talvez acabará nos próximos anos por falta de vítimas. Darfur tem uma área semelhante à da França e uma população entre 5 e 6 milhões. Os Estados Unidos têm feito vistas grossas, a exemplo de outras potências ocidentais, como a Inglaterra e a França, por causa do abundante petróleo do Sudão. Uma razão suplementar para o silêncio americano seria a suposta colaboração do regime de Cartum na busca por Osama Bin Laden e outros membros graduados da Al Qaeda.

A ONU aprovou em setembro uma resolução segundo a qual 17 mil soldados de sua força de paz substituiriam os da União Africana. O governo sudanês rejeitou a idéia. Para o presidente Omar al-Bashir, trata-se de "uma conspiração para confiscar a soberania do país”. O impasse continua. O massacre também.

Publicado originalmente em 24 de outubro de 2006 no site coletiva.net



O silêncio dos deuses

O olhar mira o infinito, em busca da impossível explicação. A voz interior conversa com o vazio que acaba de lhe preencher. Quem sabe Deus, ou Alá, ou divindades de quaisquer nomes possam escutar. Mas não. Os deuses estão calados agora, envergonhados de sua própria criação, impotentes, acuados. Ninguém responde. Ao silêncio dos deuses se soma a imensidão surda ao redor. Nenhum ruído. Seria possível ouvir a queda de um alfinete, caso a audição, como todos os outros sentidos, não estivesse fechada para a realidade. Um isolamento que o deixa a salvo do barulho das bombas, do cheiro de morte, da visão horripilante posta em seus braços, do fustigar dos escombros sob os pés. Pés que avançam céleres, embora seja tarde demais e o tempo, conceito sempre abstrato, agora não passe de uma palavra sem sentido, como tantas outras, como todas as outras. Junções aleatórias de letras, sempre dispostas a trair seu significado. Amor, solidariedade, dor, perda, ódio, intransigência, violência, pedras, água, petróleo, alimento, dinheiro, vida. Palavras que se enredam já desprovidas de significados, perdidas em meio à mistura de fumaça, poeira e restos. Restos do que foi uma habitação, restos do que foi uma vida. A vida jaz ali, a poucos centímetros do olhar, mas este olhar já não faz questão de ver. Quem sabe se não olhando, o pequeno cadáver desaparece como por mágica. Quem sabe uma prece resolvesse, se ele pudesse falar. Se eles pudessem ouvir. Porque no espaço sem som, cor, odor ou substância que ele ora habita, as palavras não se propagam. Apenas pairam no ar, como os vestígios de um artefato mortal disparado por homens que agora celebram, enquanto outros homens se aprontam para disparar outro artefato em sentido contrário, já prontos para nova celebração. Um espaço de tempo infinito nas terras da dor infinita. O que são segundos de sofrimento diante de milênios de agonia. Mas agora a agonia é concreta. Está ali, estendida nos braços. Pior, nem agonia existe. Apenas o fim, a perda, o vazio, o grande e inescapável nada. Não há para onde olhar, não há quem possa escutar. Há apenas o avanço de pernas vacilantes sobre pedaços de concreto e pedaços de corpos. Não há como fugir. Não há para onde fugir. Não dá para evitar, tampouco reparar. Resta apenas vagar no limbo do choque antes que novas ondas de choque venham furar a camada de inconsciência. Pouco importa se ele é o pai da criança, um vizinho solidário ou um terrorista. Pouco importa de que lado veio a bomba, ou quais as razões históricas do conflito. Agora, enquanto o olhar busca a transcendência, importa apenas o pequeno corpo estendido nos braços. Importa apenas a espera desesperada por uma resposta.

Publicado originalmente no site coletiva.net

.