BOM FIM DE SEMANA
Maria Bethania, em 1974.
sexta-feira, 22 de agosto de 2008
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
O que você fez de errado, Marta?
O olhar erguido para o céu, o semblante crispado pelo cansaço e pela revolta, e a indagação suprema: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?” Nada, Marta. Não é assim que funciona no futebol. Tampouco na vida. Tanto aí, neste espaço verde que flutua entre o sacro e o demoníaco, quanto aqui fora, no imenso vazio de justiça e paz.
Você, Marta, ao contrário de tantos integrantes do time olímpico brasileiro, em especial aqueles rapazes que são seus colegas de modalidade, ao menos tem o direito de perguntar. Eles não precisam, seja porque já sabem, seja porque vão dormir com a serenidade dos inconscientes.
Sabe, Marta, esporte é assim mesmo, ainda mais esporte coletivo, que depende de tanta gente acertar ao mesmo tempo e, quando isso acontece, nem sempre se traduz em vitória. A vida é assim, Marta.
Milhões de pessoas se perguntam todos os dias, ao acordar para mais uma jornada exaustiva de trabalho, de transporte coletivo abarrotado, de remuneração miserável, enquanto tantos enriquecem roubando, alguns roubando dinheiro público, produzido com o suor desta jornada exaustiva: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?”
São outros tantos, que sempre praticaram o bem, a solidariedade, a generosidade, e que acabam por se tornar vítimas da violência de nossos tempos, a se perguntar diante de tanta crueldade: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?”
O cidadão que nada fez de errado, e ainda assim sofre com atos prepotentes ou equivocados da Justiça, ao observá-la tão branda com criminosos notórios de ternos bem cortados, ou concedendo penas leves à bandidagem pesada, este por certo se pergunta: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?”
Não vivemos numa meritocracia. Honestidade, esforço, dedicação, suor, competência, talento, lealdade, nada disso é sinônimo de recompensa.
No futebol é diferente, é verdade. Não adianta jogar melhor, não basta ter mais técnica ou se esforçar ao extremo. Você fez tudo isso, mas desta vez, você e suas colegas não conseguiram fazer o gol, e isso se sobrepõe a todo o resto. Pensando friamente, venceu quem marcou gol, que é o objetivo do futebol, e isso não pode ser classificado como injustiça.
Claro, Marta, você já está cansada de ser vice, duas vezes no Mundial, duas nas Olimpíadas, duas na Europa. É, deve cansar mesmo. Além do mais, o que para nós é apenas um jogo, para você é imensamente mais do que isso. Mas você foi eleita duas vezes a melhor do mundo e é ídolo de milhões.
De todo modo, seu desabafo repete o desabafo de muita gente, todos os dias. Sua identificação com o povo, que já era enorme, certamente aumentou.
O ouro seria uma maravilha, até para ficar marcado como o primeiro desta modalidade em que os rapazes não conseguem triunfar. Não seria o máximo, no machista país do futebol, o primeiro ouro ser das mulheres?
Mas você tentou, fez de tudo, a gente viu. A medalha é de prata, você é de ouro.
Beijos no coração, Marta.
Durma bem.
O olhar erguido para o céu, o semblante crispado pelo cansaço e pela revolta, e a indagação suprema: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?” Nada, Marta. Não é assim que funciona no futebol. Tampouco na vida. Tanto aí, neste espaço verde que flutua entre o sacro e o demoníaco, quanto aqui fora, no imenso vazio de justiça e paz.
Você, Marta, ao contrário de tantos integrantes do time olímpico brasileiro, em especial aqueles rapazes que são seus colegas de modalidade, ao menos tem o direito de perguntar. Eles não precisam, seja porque já sabem, seja porque vão dormir com a serenidade dos inconscientes.
Sabe, Marta, esporte é assim mesmo, ainda mais esporte coletivo, que depende de tanta gente acertar ao mesmo tempo e, quando isso acontece, nem sempre se traduz em vitória. A vida é assim, Marta.
Milhões de pessoas se perguntam todos os dias, ao acordar para mais uma jornada exaustiva de trabalho, de transporte coletivo abarrotado, de remuneração miserável, enquanto tantos enriquecem roubando, alguns roubando dinheiro público, produzido com o suor desta jornada exaustiva: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?”
São outros tantos, que sempre praticaram o bem, a solidariedade, a generosidade, e que acabam por se tornar vítimas da violência de nossos tempos, a se perguntar diante de tanta crueldade: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?”
O cidadão que nada fez de errado, e ainda assim sofre com atos prepotentes ou equivocados da Justiça, ao observá-la tão branda com criminosos notórios de ternos bem cortados, ou concedendo penas leves à bandidagem pesada, este por certo se pergunta: “Meu Deus, o que eu fiz de errado?”
Não vivemos numa meritocracia. Honestidade, esforço, dedicação, suor, competência, talento, lealdade, nada disso é sinônimo de recompensa.
No futebol é diferente, é verdade. Não adianta jogar melhor, não basta ter mais técnica ou se esforçar ao extremo. Você fez tudo isso, mas desta vez, você e suas colegas não conseguiram fazer o gol, e isso se sobrepõe a todo o resto. Pensando friamente, venceu quem marcou gol, que é o objetivo do futebol, e isso não pode ser classificado como injustiça.
Claro, Marta, você já está cansada de ser vice, duas vezes no Mundial, duas nas Olimpíadas, duas na Europa. É, deve cansar mesmo. Além do mais, o que para nós é apenas um jogo, para você é imensamente mais do que isso. Mas você foi eleita duas vezes a melhor do mundo e é ídolo de milhões.
De todo modo, seu desabafo repete o desabafo de muita gente, todos os dias. Sua identificação com o povo, que já era enorme, certamente aumentou.
O ouro seria uma maravilha, até para ficar marcado como o primeiro desta modalidade em que os rapazes não conseguem triunfar. Não seria o máximo, no machista país do futebol, o primeiro ouro ser das mulheres?
Mas você tentou, fez de tudo, a gente viu. A medalha é de prata, você é de ouro.
Beijos no coração, Marta.
Durma bem.
terça-feira, 19 de agosto de 2008
TOCO Y ME VOY
O CLASSE MÉDIA QUE SOBE
O paulistano João Rogério da Silva Alves, 36 anos, 15 dos quais casado com Maria Cavalcanti, é motorista de táxi há 13. Mora com a mulher e duas filhas (14 e 9 anos) no bairro de Cachoeira, um amontoado de construções tristonhas que parecem mais velhas do que são – e sempre à espera do acabamento, dos atavios e dos móveis que não virão. O serviço de água funciona razoavelmente, a rua é asfaltada, mas a rede de saneamento básico ainda não chegou lá. A exemplo dos vizinhos, os Alves se livram dos detritos e dejetos do dia no leito de um córrego que depois os despeja no Rio Tietê.
A casa, alugada por R$ 300 mensais, tem dois cômodos de 12 m². O reservado à cozinha acabou acumulando as funções de sala de visitas, sala de jantar e copa. O outro é o quarto, dividido ao meio por um lençol ali pendurado para sugerir a inexistente privacidade. Nesse espaço estão a cama do casal e a das filhas, separadas por centímetros, além da TV comprada em janeiro de 2006 por R$ 800, fatiados em 12 prestações. "De lá para cá não tive dinheiro para mais nada", diz Alves. Nem para o carro próprio, que o dispensaria da porcentagem cobrada pelo patrão.
Há 13 anos a serviço do dono de uma frota de táxis, acorda sempre às 5h, busca o veículo na garagem da empresa e estaciona antes das 6h no ponto localizado na esquina entre a Alameda Peixoto Gomide e a Rua Oscar Freire, no coração dos Jardins. Nas 16 horas seguintes, estará ou à espera de algum passageiro, ou circulando pelos labirintos da metrópole, ou testando a paciência em ruas congestionadas.
Dorme perto de meia-noite. Folga aos domingos se juntou o suficiente durante a semana. Não tira férias há mais de 10 anos. "Com o que ganho, não dá para ter luxos, mas não devo nada a ninguém", diz. "Vivo uma vida de pobre". Ganha por mês cerca de R$ 1.800, que se somam aos R$ 400 que a mulher consegue como diarista. A renda familiar ultrapassa amplamente a fronteira, redefinida em 6 de agosto pela Fundação Getúlio Vargas, que separa a pobreza da classe média. "Você chegou aos R$ 1.064", deveria prevenir alguma placa. Por falta de aviso, Alves só soube na quinta-feira que subira na vida sem mudar de vida. Continuava pobre, mas na classe média.
"Como é que posso ser da classe média se não tenho como fazer o que faz a classe média?", intriga-se. Pergunto-lhe o que acha que faz a turma da divisão a que foi promovido. A classe média vai ao cinema ou ao teatro uma vez por semana, exemplifica. "E sai para comer num restaurante melhorzinho". Alves não vai ao cinema há 15 anos e nunca foi ao teatro. "Vontade eu tenho, o que não tenho é dinheiro", desculpa-se. Mas de vez em quando vai com a família a uma churrascaria, ressalva. Foi pela última vez faz três anos.
Ele por acaso notou que a pobreza está diminuindo, e em alta velocidade, como garante a pesquisa? "Só se os pobres dos bairros que esses caras pesquisaram mudaram todos para o meu", acha graça. Aponta um punhado de deficientes físicos e mulheres em andrajos com crianças de colo e emenda: "É assim em qualquer esquina". No fim da corrida, ele avisa que resolveu conferir a promoção: "Se entrei na classe média, vou usar o elevador social", sorri. "Até hoje só pude usar o elevador de serviço".
O indigente e a ararinha azul
Os alquimistas do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas não fariam feio se disputassem com os curandeiros da Fundação Getúlio Vargas a final do campeonato brasileiro de levantamento de pobre. Só anda faltando à direção do time mais esperteza marqueteira. Foi um erro, por exemplo, divulgar o levantamento do IPEA, também circunscrito às seis maiores metrópoles do País, junto com estudo da FGV intitulado A nova classe média. Ao transplantar um pedaço da pobreza para o organismo debilitado da classe média, a FGV mandou um petardo no ângulo que acabou ofuscando os dribles e passes de trivela dos craques do IPEA.
Um dos lances mais vistosos resultou na expulsão de milhões de brasileiros do campo da pobreza, restrito a famílias com renda mensal abaixo de R$ 207. De 2003 a 2008, segundo o IPEA, o índice baixou de 35% para 21,1%. Eram 14.352.753 no primeiro dia da Era Lula. Cinco anos depois, 4 milhões saíram do atoleiro. Os efeitos da pesquisa foram ainda mais agudos entre os miseráveis, rebatizados como "indigentes": os que sobrevivem com menos de R$ 103,75 caíram de 13,7% para 6,6%. Indigente agora virou uma espécie em extinção. Em 2010, será mais fácil enxergar uma ararinha azul que um genuíno miserabilis brasilis.
Publicado originalmente na Gazeta Mercantil.
O CLASSE MÉDIA QUE SOBE
PELO ELEVADOR DE SERVIÇO
Augusto Nunes
Augusto Nunes
O paulistano João Rogério da Silva Alves, 36 anos, 15 dos quais casado com Maria Cavalcanti, é motorista de táxi há 13. Mora com a mulher e duas filhas (14 e 9 anos) no bairro de Cachoeira, um amontoado de construções tristonhas que parecem mais velhas do que são – e sempre à espera do acabamento, dos atavios e dos móveis que não virão. O serviço de água funciona razoavelmente, a rua é asfaltada, mas a rede de saneamento básico ainda não chegou lá. A exemplo dos vizinhos, os Alves se livram dos detritos e dejetos do dia no leito de um córrego que depois os despeja no Rio Tietê.
A casa, alugada por R$ 300 mensais, tem dois cômodos de 12 m². O reservado à cozinha acabou acumulando as funções de sala de visitas, sala de jantar e copa. O outro é o quarto, dividido ao meio por um lençol ali pendurado para sugerir a inexistente privacidade. Nesse espaço estão a cama do casal e a das filhas, separadas por centímetros, além da TV comprada em janeiro de 2006 por R$ 800, fatiados em 12 prestações. "De lá para cá não tive dinheiro para mais nada", diz Alves. Nem para o carro próprio, que o dispensaria da porcentagem cobrada pelo patrão.
Há 13 anos a serviço do dono de uma frota de táxis, acorda sempre às 5h, busca o veículo na garagem da empresa e estaciona antes das 6h no ponto localizado na esquina entre a Alameda Peixoto Gomide e a Rua Oscar Freire, no coração dos Jardins. Nas 16 horas seguintes, estará ou à espera de algum passageiro, ou circulando pelos labirintos da metrópole, ou testando a paciência em ruas congestionadas.
Dorme perto de meia-noite. Folga aos domingos se juntou o suficiente durante a semana. Não tira férias há mais de 10 anos. "Com o que ganho, não dá para ter luxos, mas não devo nada a ninguém", diz. "Vivo uma vida de pobre". Ganha por mês cerca de R$ 1.800, que se somam aos R$ 400 que a mulher consegue como diarista. A renda familiar ultrapassa amplamente a fronteira, redefinida em 6 de agosto pela Fundação Getúlio Vargas, que separa a pobreza da classe média. "Você chegou aos R$ 1.064", deveria prevenir alguma placa. Por falta de aviso, Alves só soube na quinta-feira que subira na vida sem mudar de vida. Continuava pobre, mas na classe média.
"Como é que posso ser da classe média se não tenho como fazer o que faz a classe média?", intriga-se. Pergunto-lhe o que acha que faz a turma da divisão a que foi promovido. A classe média vai ao cinema ou ao teatro uma vez por semana, exemplifica. "E sai para comer num restaurante melhorzinho". Alves não vai ao cinema há 15 anos e nunca foi ao teatro. "Vontade eu tenho, o que não tenho é dinheiro", desculpa-se. Mas de vez em quando vai com a família a uma churrascaria, ressalva. Foi pela última vez faz três anos.
Ele por acaso notou que a pobreza está diminuindo, e em alta velocidade, como garante a pesquisa? "Só se os pobres dos bairros que esses caras pesquisaram mudaram todos para o meu", acha graça. Aponta um punhado de deficientes físicos e mulheres em andrajos com crianças de colo e emenda: "É assim em qualquer esquina". No fim da corrida, ele avisa que resolveu conferir a promoção: "Se entrei na classe média, vou usar o elevador social", sorri. "Até hoje só pude usar o elevador de serviço".
O indigente e a ararinha azul
Os alquimistas do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas não fariam feio se disputassem com os curandeiros da Fundação Getúlio Vargas a final do campeonato brasileiro de levantamento de pobre. Só anda faltando à direção do time mais esperteza marqueteira. Foi um erro, por exemplo, divulgar o levantamento do IPEA, também circunscrito às seis maiores metrópoles do País, junto com estudo da FGV intitulado A nova classe média. Ao transplantar um pedaço da pobreza para o organismo debilitado da classe média, a FGV mandou um petardo no ângulo que acabou ofuscando os dribles e passes de trivela dos craques do IPEA.
Um dos lances mais vistosos resultou na expulsão de milhões de brasileiros do campo da pobreza, restrito a famílias com renda mensal abaixo de R$ 207. De 2003 a 2008, segundo o IPEA, o índice baixou de 35% para 21,1%. Eram 14.352.753 no primeiro dia da Era Lula. Cinco anos depois, 4 milhões saíram do atoleiro. Os efeitos da pesquisa foram ainda mais agudos entre os miseráveis, rebatizados como "indigentes": os que sobrevivem com menos de R$ 103,75 caíram de 13,7% para 6,6%. Indigente agora virou uma espécie em extinção. Em 2010, será mais fácil enxergar uma ararinha azul que um genuíno miserabilis brasilis.
Publicado originalmente na Gazeta Mercantil.
Crédito da foto: Divulgação SEMAR/PI
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