terça-feira, 28 de abril de 2009

CRÔNICA

Passeio numa tarde de sábado

Miley (pronuncia-se Máili), a siamesa de nome inspirado em Miley Cyrus, estrela da hora da Disney, e obviamente colocado por minhas filhas, arregala os olhos que à luz do sol são de um azul improvavelmente cristalino, observa-me a amarrar os cadarços dos tênis, resmunga alguma coisa e se conforma num canto da sala. Estamos em pleno outono, estação rebaixada à condição de breve ponte entre verões insistentes e invernos tardios. O aquecimento global é mais presente do que gostaríamos de supor, mas agora só me importa ganhar as ruas e queimar algumas calorias, sentir a liberdade da leve brisa de encontro ao rosto, o prazer do suor a empapar a camiseta preta e quem sabe, com pouco mais de uma hora de esforço, saborear uma compensadora dose de endorfina (cujo nome, aprendi só outro dia, significa “a morfina que vem de dentro”, ou algo assim).

O percurso começa lomba acima, trecho curto, no qual passo por um mercadinho com um cão muito esquisito por trás das grades do pátio, uma oficina mecânica e uma igreja messiânica qualquer, de nome indecorável, mas chamativo o bastante para lotar o salão tão logo se instalou numa antiga loja de flores, plantas e supostos projetos de paisagismo. Uma descida média, agora. À direita encaro o semblante desconsolado de um homem de meia-idade sentado numa cadeira comum em frente à Zélia Modas, loja de confecções gradeada situada num ponto morto da rua, de pedestres e carros escassos, sobrevivendo sabe-se lá como enquanto, à esquerda, desvio rapidamente o olhar de um casal jovem num carro popular estacionado, trocando juras de amor eterno que se desvanecerão em breve como seu melhor jeans.

Outra subida, desta vez mais curta, mas bem mais íngreme, e chego a uma praça que ocupa duas quadras, cortada ao meio, na vertical, por uma ruela que leva de nada a lugar algum. Arrisco dar algumas voltas na segunda metade, tendo de desviar de cacos de vidros de garrafas atiradas por bêbados ou vândalos, e cruzo com duas velhinhas a caráter, vestidas com aquele tipo de roupa que se compra para mostrar para todo mundo, em especial os vizinhos, que se pratica algum tipo de esporte. Eu corro, elas caminham, mas, a cada volta, eu as encontro num ponto anterior, o que significa que elas devem estar indo mais rápido do que eu. Estranho... Mas deve haver uma explicação.

Mais uma ladeira a desbravar, ainda mais longa e extenuante. Ao final dela, passo defronte a um posto da antiga LBA, a Legião Brasileira de Assistência, desmoralizada e extinta pelas roubalheiras da Era Collor, e que em minha infância eu conhecia como “A Legião”. Vem-me à mente, com a clareza das memórias necessárias para preservar um pouco do lúdico perdido, a ocasião em que, levado por Emília, minha avó materna, para tomar uma vacina ali, recebi depois como recompensa pela agulhada um compacto simples, disco de vinil com uma faixa de cada lado, dos Carpenters. De um lado, Mr. Postman; de outro, This Masquerade. A doce voz de Karen se faz ouvir ao longe, a long, long time ago.

As subidas acabaram. Agora vem um trecho plano, algumas descidas. Passo em frente a uma casa de madeira, daquelas típicas do bairro da infância, quase vizinho dali. Esta difere das outras apenas por uma placa na fachada: “Cartomante, Tarô, Bruxaria, Wicka. Consultas somente agendadas” e um número de telefone que, na dúvida, registro na agenda do celular. Quem sabe em que momento da vida o impensável pode se converter em razoável?

Mais subida, agora longa, bem longa, e vou parar numa avenida quase estrada, a um só tempo movimentada e remota, muito além do que imaginava ir. Será a endorfina? Será a wicka?
Duas prostitutas tentam, à luz do dia e às portas de um novo empreendimento imobiliário que se imagina exclusivo, oferecer seus corpos precários a motoristas solitários, um Gol com uns bons vinte anos de uso para, uma delas corre para negociar, a outra observa interessada, afinal, são dois os ocupantes do veículo.

Sei onde estou, mas não conheço aquelas ruas, entro em duas ou três delas, todas sem saída. Alguém teve a idéia de tornar o lugar exclusivo abrindo ruas sem saída. Melhor que fechassem tudo logo, mas preferiram se apoderar da via pública sem de fato fazê-lo (e sem pagar os impostos subjacentes), tornando qualquer passante um intruso, alguém que não deveria estar ali, olhado com desconfiança por senhoras zelosas de seus jardins e homens barrigudos a lavar os carros nas calçadas.

Agora tenho pela frente uma forte descida, que ao contrário do que pensam os não habitués, nada oferece de conforto, ao contrário, exige das articulações um sacrifício já demasiado depois de tanto esforço.

Enfim, um terreno levemente inclinado para cima. Terei subidas piores depois, mas ainda é cedo para me preocupar com isso. O caminho que sigo agora ladeia um campo de várzea, cuja extinção absoluta, embora lamentada com certo entusiasmo, está fadada a jamais se confirmar. O campo fica lá embaixo, estou no topo do barranco e encontro um toco de árvore, próximo a uma parada de ônibus, que por algum tempo será meu desconfortável acento no que passo a considerar a arquibancada superior. Uma equipe de vermelho enfrenta outra de laranja. Na maioria, homens passados dos quarenta, ao menos três deles com mais de sessenta. E ruins, de modo geral, em especial os goleiros. Nas peladas, sabe-se, vão para o gol não os mais habilidosos no gol, mas os de futebol mais medíocre, despachados para o lugar no qual, supostamente, causarão menos estragos.

Dois atletas de fim de semana, com suas barrigas de segunda a domingo, chamam-me a atenção. Um é do time laranja: negro alto, magro, cheio de pose, joga de volante e, quem sabe influenciado pela cor da camisa, porta-se como um Gullit. Embora exiba boa técnica, Gullit, como passo a vê-lo, é muito individualista, acaba sempre perdendo a bola no momento crucial. Seria mais produtivo se passasse mais. O outro é da equipe vermelha e usa uma chamativa bandana estampada, razão pela qual eu o apelido mentalmente de Pirata. O Pirata é o atacante mais efetivo, o que sempre busca a grande área.

Na linha de fundo à minha direita, lá embaixo, um bêbado reclama do goleiro, brandindo uma garrafa em cada mão. Minha bunda começa a doer. O toco de árvore é providencial, mas muito desconfortável. Penso nisso quando sinto algo se aproximar demais de mim, viro-me à esquerda e entra em primeiro plano as rodas de um táxi. Talvez entediado por trabalhar num dia de sol tão lindo, talvez porque os passageiros sumiram, o taxista invadiu a escassa relva do barranco para ver homens sem habilidade brigando pela bola num campo cuja grama se restringe a uma rala moldura. O jogo todo se desenvolve na areia. É quase beach soccer, mas mais duro.

Boa, Pirata, vai! Não adianta, bucaneiro, você está só. Um atacante com barriga acima do aceitável, mesmo para os padrões dali, recebe a bola sozinho, corre, corre, corre, chega na frente do goleiro e toca para fora de modo patético. Levanto-me de imediato, no que sou acompanhado pelo taxista. Isso fora demais para nós dois.

Depois de quase quarenta minutos no toco, não é só a bunda que dói. Os pés, as pernas, antes em intensa atividade, foram parados de súbito e tiveram de se adaptar ao toco nada ergonômico. A circulação agora cobrará seu preço, o caminho que resta de volta será penoso, entre ruas mal calçadas e dribles em cocôs caninos nas praças. Já próximo da chegada, cruzo com duas velhinhas bem vestidas, com aquelas roupas que... não, não pode ser.

Miley me recebe com um ronronado, um bocejo, uma espreguiçada e alguma ironia. Passara a tarde toda cochilando, agora comeria algo e voltaria a cochilar, enquanto eu suava feito doido.


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MÍDIA

Bocelli nada viu em 35 de abril

Quando o politicamente correto ainda não eliminara certas anedotas, ouvia-se muito a seguinte frase: “Você viu o novo disco (nem havia CD ainda) do Steve Wonder?” Se o incauto respondesse “não”, vinha o complemento: “Nem ele”, e o piadista caía na risada. O gracejo já era velho quando surgiu o CD. Ainda assim, muitos continuaram a aplicá-lo. Difícil imaginar quem nunca ouviu tal bobagem. Na terça-feira 21 de abril, no entanto, uma repórter do Jornal Nacional, cujo nome não registrei, começou o texto da cobertura do show de Andréa Bocelli em São Paulo com a seguinte frase: “Deficiente visual, Andréa Bocelli não viu as 25 mil pessoas que...”

Na edição de 25 de abril, o repórter Pedro Bassan, direto de Portugal, abriu assim a matéria sobre os 35 anos da Revolução dos Cravos: “35 de abril. Uma data...”
A MÚSICA NA HISTÓRIA


Veja o depoimento de Chico Buarque a respeito das duas versões da canção Tanto Mar, criada em homenagem à Revolução dos Cravos.





MÍDIA



A coluna de Augusto Nunes na Veja.com está no ar desde a semana passada, com atualizações diárias.
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/


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