sexta-feira, 27 de junho de 2008
A velha casa de madeira com seus rangeres noturnos, móveis desgastados e pátio mal cuidado hospedaria uma alvissareira novidade tecnológica naquele ano de 1970. Num final de semana frio, suavizado pelo fogareiro a carvão, meu pai levara serviço para casa e, com ele, uma reluzente IBM elétrica de esfera, dos primeiros modelos, ainda com bordas arredondadas. Aos olhos de um menino de dez anos sem muito contato com as novidades do mundo, a Ferrari das máquinas de escrever, com seu largo e sólido corpo de ferro, sua batida ágil, silenciosa e veloz como nenhuma outra jamais conseguira ser, assemelhava-se a um instrumento dos deuses. Além disso, meu pai devia ser importante na firma, para poder colocá-la embaixo do baixo e se mandar para casa ao final do expediente.
Tão magnífico equipamento era acompanhado de caixinhas com uma fina base de plástico e uma tampa de acrílico em forma de redoma que permitia vislumbrar o instigante conteúdo: em seu interior jaziam, brilhando de novas, uma meia-dúzia de esferas sobressalentes. Ao contrário das outras máquinas de escrever, meros invólucros de plástico recheados de gravetos vacilantes, barulhentos e desencaixantes, com fitas sujas, frágeis e desenroscantes, aquela maravilha permitia a troca da esfera que ia e vinha, vinha e ia sem que nem bem lhe pudéssemos registrar os movimentos.
Pela primeira vez, e muito antes de o computador doméstico entrar em cena, podia-se variar a tipologia de um texto sem recorrer a uma gráfica. Era possível datilografar em itálico, negrito, letra cursiva, corpo maior que o usual, sublinhar, bater de novo por cima para reforçar, traçar fios, cercaduras e, com alguma imaginação, até alguns desenhos primitivos, e tudo de maneira limpa, sem borrões, sem dedos sujos, pois mesmo a fita, encaixotada como uma VHS, era de natureza superior.
Ouvi atentamente às explicações de meu pai, por certo orgulhoso pelo interesse do filho, por poder lhe ensinar algo tão interessante e, mais ainda, por ser reconhecido como o guardião, ainda que temporário, daquele verdadeiro tesouro. Esta não era sua única vantagem sobre mim naquele momento. Havia outra, que se revelaria permanente: meu pai digitava com os dez dedos, em velocidade absurda, sem em momento algum olhar para o teclado, e nunca errava. Pena que tal habilidade não era genética, por isso o filho teria de ganhar a vida com a energia de apenas dois ou três dedos.
O fim de semana foi de vigília, afinal, o sonho se encerraria na segunda-feira pela manhã. Esperava apenas meu pai fazer uma pausa para me posicionar à frente da máquina colocada sobre a penteadeira convertida em mesa de trabalho. Ao menos não precisava fazer escondido. Ele não apenas deixava como dava as dicas. De esfera em esfera, descortinava-se para mim o prazer de escrever, de editar, de diagramar. A pauta era óbvia: vivíamos o ano da Copa do Mundo do México. Não recordo se foi antes ou depois de o Brasil conquistar o tricampeonato, mas deve ter sido antes, pois lembro de fazer tabelas de jogos e de classificação, simulando o formato dos carnês de bolso que eram moda na época, a ponto de muita gente andar mesmo com um, anotando cada resultado, ainda que não fosse do grupo do Brasil.
Havia manchete, títulos secundários, boxes, tudo que um jornal de verdade tinha. Para ficar mais verossímil, eu colocava a folha na horizontal, para transformá-la em página dupla, e depois, graças à boa gramatura do papel almaço, utilizava o verso, e tão grande era a máquina que ainda sobrava bastante espaço nas laterais. Escrevia em colunas, respeitava as margens e depois dobrava. Virava mesmo um jornalzinho.
Dez anos depois me reencontraria com a IBM de esfera como revisor, fazendo emendas, ouvindo o zumbido de dezenas de outras, dali mesmo e da digitação, na sala ao lado. Ainda pretendo ter uma. Como a amante tão desejada que parte ao amanhecer, usei-a, mas jamais cheguei a possuí-la.
Nunca se sabe o exato momento em que tomamos a decisão que muda nossa vida. De modo geral, temos poder sobre decisões banais, como beber água ou ir dormir, apenas para nutrirmos a ilusão de que estamos no controle. As outras coisas, as que realmente importam, escampam-nos totalmente, são decididas de maneira casual, errática, a nos lembrar a inutilidade de fazer planos. Mas, se houve um momento preciso em que me tornei jornalista, bem pode ter sido aquele, num final de semana frio, aquecido pelo fogareiro a carvão e esperando que meu pai interrompesse seu concerto para esfera e papel.
Publicado originalmente no site coletiva.net
A briga pela audiência chega a ser patética. A Globo, que anos atrás sofreu com o bom desempenho de Pantanal, não quer correr riscos. A novela que virou um clássico da TV brasileira não ameaça seriamente A Favorita, até porque é exibida depois, mas há ainda Os Mutantes da Record a lhe arrancar nacos de audiência.
O SBT tem pedido ao público que troque de canal quando termina A Favorita para assistir a Pantanal. O apelo se reflete numa guerra de nervos diária entre as duas emissoras. Ontem, por exemplo, a novela da Globo deveria terminar às 22h10, quando entraria no ar A Grande Família, mas foi esticada para atrapalhar a estratégia da concorrência. Enquanto isso, o Jornal do SBT, que deveria se encerrar às 22h para dar lugar a Pantanal, também seguiu adiante, com Carlos Nascimento apresentando cada reportagem sabendo que poderia ser a última daquela edição. A Grande Família começou às 22h22. Pantanal se iniciou às 22h23.
Bill Gates deixa hoje a presidência da Microsoft. Este vídeo, produzido recentemente, faz uma simulação bem-humorada de como seria este momento.
Video: Último dia do Bill Gates
quarta-feira, 25 de junho de 2008
Hoje o Blog recebe duas convidadas cujo momento profissional oferece certo contraponto. No primeiro texto, a mestre em comunicação Ana Brambilla fala dos tempos em que apenas sonhava com a profissão. No segundo, a caloura de jornalismo da PUC/RS Laís Flores faz uma breve reflexão sobre realidade e mídia.
Ana Brambilla é uma entusiasta do jornalismo colaborativo. Gaúcha radicada em São Paulo, é editora assistente de internet da Editora Abril, leciona na Faculdade Cásper Líbero e na UniSant'Anna e mantém o blog Libellus em anabrambilla.com/blog. Certa vez ela participou da promoção Seja Jornalista por um Dia, do jornal Zero Hora e, diante de sua empolgação, convidei-a posteriormente a integrar o conselho editorial jovem da editoria de esportes, que eu acabara de lançar e que representava uma inovação na época. Por isso a referência que ela faz a mim no final do texto, publicado originalmente em seu blog.
Laís Flores tem 20 anos de idade, gosta de literatura, cinema, música, aquele mix cultural comum a quem envereda por este terreno. E já exibe desenvoltura ao lidar com as palavras.
Agora, toco y me voy.
Ana Brambilla
Então chegou um telegrama lá em casa, dizendo para eu comparecer ao departamento de Recursos Humanos da RBS (Zero Hora) dia tal, a tal hora. Av. Ipiranga, 1075. Eu tremi nas bases. Tinha só 13 anos. E recém havia decidido ser jornalista.
Então passei uma tarde maravilhosa com uma equipe de jornalistas e outros adolescentes leitores do Caderno de Esportes de ZH, fazendo aquilo que eu já gostava naquela época: dar pitacos no jornalismo.
A tarde terminou afundada num BigMac trazido por uma das jornalistas àquela sala no térreo do prédio da Ipiranga esquina Erico Verissimo.
Alguns… 13 anos se passam (eita!!) e hoje eu vejo que o espanhol La Vanguardia convida internautas de várias faixas etárias e profissões para comporem o “Consejo Editorial de los Usuarios de LV.es”” – uma iniciativa pra lá de bacanuda que visa a extrair desse povo idéias para melhorar o site do jornal… “… ejerciendo de “ojos críticos” con el objetivo de corregir errores, mejorar día a día y de ser más próximos a los lectores y usuarios”.
Será que eles vão ganhar BigMac no final?
(Valeu Eliziário Goulart Rocha!)
Muitos, talvez TODOS os veículos de imprensa devessem fazer o mesmo.
FALTA CRIATIVIDADE NO MUNDO REAL
Laís Flores
Eu vejo o futuro repetir o passado. / Eu vejo um museu de grandes novidades. (Cazuza em O Tempo não Pára).
As notícias nos jornais e na TV se repetem de tal forma que nunca sabemos se o que o casal das oito e quinze da noite diz é algo que aconteceu muito ou pouco tempo atrás. Os Nardoni, por exemplo, ganharam seguidores e agora uma mãe e um padrasto são acusados de matar um menino de cinco anos. Mudaram apenas o sexo dos personagens e a verba da produção do filme – sai muito caro para a polícia contratar um promotor com cara de mau, um policial pedófilo e helicópteros para a reconstituição da cena do crime.
Se o assunto é recorde de bilheteria, as garotas de Massachusetts tentaram ganhar o Oscar de Melhor Roteiro Original, assim como no filme Juno, engravidando ainda na adolescência e achando a coisa mais normal do mundo. Isso sem falar dos soldados que, pensando estar no filme de José Padilha, entregam três jovens residentes do Morro da Providência para traficantes da favela vizinha pois, como diria o Capitão Nascimento, “quem é fanfarrão tem de ser torturado e pedir pra sair”. As atitudes dos soldados não os fizeram conquistar prêmios em Berlim, e o único “prêmio” que as 17 adolescentes grávidas ganharam virá em nove meses.
Sempre pensei que tais atitudes, como bater em uma atriz pensando que esta fosse de fato alguma assassina sanguinária, ou imitar a ação de um personagem de novela fosse coisa de “tia velha”, que dá “bom dia” para o Renato Machado e “boa noite” para o William Bonner, mas parece que teremos de voltar aos velhos tempos e colocar mais mocinhas de novela das seis que comem o pão que o Diabo amassou nas mãos do marido malvado e menos Jack Bauers lutando contra o vilão do terrorismo.
terça-feira, 24 de junho de 2008
Mainás e aves de rapina
Ressabiadas por freqüentes atentados à liberdade de imprensa cometidos sob a forma de ações judiciais, há muito as empresas jornalísticas submetem os textos de matérias polêmicas a seus advogados. Um dia os jornalistas serão comandados não por um diretor de redação, mas por um diretor jurídico.
O procedimento vale não apenas para matérias políticas, mas também para as que abordam denúncias contra empresários espertalhões ou contraventores de ocasião. O público não fica sabendo, e deveria. Assim como os veículos são hoje tão zelosos em corrigir os erros na edição seguinte, deveriam também fazer constar no início da reportagem explicações como “este texto foi lido antes por nossos advogados, que não viram problemas em sua publicação” ou “parte do texto foi suprimida por orientação do departamento jurídico”.
Como o leitor não fica sabendo, desconhece os eventuais prejuízos, mas os editores pensarão duas vezes antes de fechar uma página ou colocar uma reportagem no ar depois de terem sido forçados a refazer o trabalho, contrariando a realidade e suas convicções, porque poderia custar caro na justiça. Os repórteres, depois de passar semanas apurando uma matéria especial, acabam vendo cortada a parte mais conclusiva. A autocensura instala-se com facilidade, para deleite de quem tem interesse em manter subterrâneas determinadas informações.
Todo jornalista, é claro, tem o dever de realizar uma apuração precisa, consistente e isenta, tanto quanto de lutar contra o denuncismo, praga capaz de destruir reputações e carreiras à base de hipóteses, e não de fatos comprovados. É igualmente óbvio que as empresas de comunicação têm de se acautelar contra ações judiciais capazes de impingir a seus cofres considerável sangria, principalmente quando os detalhes omitidos não forem assim tão relevantes para o resultado final da reportagem. O problema é estabelecer esse limite.
Alguns veículos, na dúvida, submetem ao jurídico todo o material a ser publicado. Para piorar a situação, nem sempre o potencial explosivo de determinada reportagem é analisada por experientes homens do direito. Muitas vezes, longa e esmerada apuração acaba caindo nas mãos de um estudante em cumprimento de estágio.
A influência do jurídico também pode levar a certos disparates. Anos atrás, o diretor de uma grande redação espantou-se ao ler o relatório sobre a edição prestes a ir às bancas. Uma notícia que seria publicada em forma de nota dava conta de que, numa província da China, um mainá havia sido arrolado como testemunha em um processo de divórcio. Ao retornar de uma viagem, a mulher descobrira que o marido a traía quando o pássaro, capaz de repetir palavras como um papagaio, começara a dizer “eu te amo”, “tenha paciência” ou “divórcio”.
Confrontado com a informação irrelevante, mas sem dúvida curiosa e engraçada, o jurídico, determinado a orientar os jornalistas na busca da precisão, observou o seguinte: “Aqui, precisaríamos pesquisar para saber se a presença de um pássaro como testemunha seria fato aceito em tribunais, de acordo com as leis de nosso país...” e por aí afora. Virou piada, mas no fundo deveria ser levado a sério, embora não no sentido que o jurídico queria. Até porque o excesso de zelo, além de preservar mainás, muitas vezes acaba beneficiando aves de rapina.
Publicado originalmente no site coletiva.net
segunda-feira, 23 de junho de 2008
Convencidos de que têm cumprido seu dever e de que a pauta do País não inclui qualquer problema urgente, nossos parlamentares decidiram se dar ao luxo de acrescentar mais um item à extensa lista de feriadões nacionais. Trata-se do feriadão junino. Ao contrário do que ocorre no Brasil, no calendário legislativo esta semana é dedicada a festas, não a trabalho. Em vez de cafezinho, quentão.
A inconveniente iniciativa é uma espécie de aquecimento para o que vem por aí. De 10 a 17 de julho haverá o recesso formal e, em seguida, as campanhas eleitorais esvaziarão outra vez nossas torres gêmeas.
Na Câmara dos Deputados ao menos os folgazões passarão algum constrangimento. O presidente da casa, Arlindo Chinaglia, avisou que as sessões e comissões terão funcionamento normal nesta semana, ao menos oficialmente, pois será difícil obter quorum.
No Senado os gazeteiros, sempre inclinados a acreditar que o povo esquecerá tudo até a próxima visita às urnas, podem cair na farra tranqüilos. Seu presidente, Garibaldi Alves Filho, decretou “recesso branco” e liberou a turma para se divertir à beça, expressão que Alves por certo aprovaria.
“Não pega bem se alguém deixar de aparecer nas festas”, declarou o presidente do Senado com o tradicional e desanimado semblante daquele tio que costuma aparecer sem convite no almoço de domingo e que, entre um cochilo e outro, conta sempre as mesmas piadas. “Como bom nordestino”, argumentou, entende a importância das festas para o povo da região.
Alguém deveria informar ao dinâmico senador que o povo por certo prefere ver seus representantes resolvendo os problemas do País e não dançando a quadrilha, ainda que este seja um tema familiar a alguns deles.
Enquanto o brasileiro comum trabalha duro para pagar impostos excessivos e, se sobrar alguma coisa, comprar os serviços que o Estado não consegue suprir, os congressistas se entregam à folia fora de hora. Deve ser hilário assistir à performance de certos políticos na pescaria ou na dança em volta da fogueira. Dispostos a amealhar preciosos votos, eles só não topam participar da brincadeira da cadeia. Vai que alguém leve a sério. Vadiagem é crime.
Crédito da foto:
Jane de Araújo - Agência Senado