quinta-feira, 10 de julho de 2014

GRANDES NOMES
Gay Talese, o ícone

Primeiro, leiam o início de Frank Sinatra Está Resfriado:


Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na outra, estava num canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele. Mas ele não dizia nada; passara boa parte da noite calado; só que agora, naquele clube particular em Beverly Hills, parecia ainda mais distante, fitando, através da fumaça e da meia-luz, um largo salão depois do balcão, onde dezenas de jovens casais se espremiam em volta de pequenas mesas ou dançavam no meio da pista ao som trepidante do folk­rock que vinha do estéreo. As duas loiras sabiam, como também sabiam os quatro amigos de Sinatra que estavam por perto, que não era uma boa ideia forçar uma conversa com ele quando ele mergulhava num silêncio soturno, uma disposição nada rara em Sinatra naquela primeira semana de novembro, um mês antes de seu quinquagésimo aniversário.
“Sinatra estava fazendo um filme que agora o aborrecia e não via a hora de terminá-lo; estava cansado de toda a falação da imprensa sobre seu namoro com Mia Farrow, então com vinte anos, que aliás não deu as caras naquela noite; ele estava furioso com um documentário da rede de televisão CBS sobre a vida dele, que iria ao ar dentro de duas semanas e que, segundo se dizia, invadia a sua privacidade e chegava a especular sobre suas ligações com os chefes da máfia; estava preocupado com sua atuação num especial da NBC intitulado Sinatra – um Homem e sua Música, no qual ele teria de cantar dezoito canções com uma voz que, naquela ocasião, poucas noites antes do início das gravações, estava debilitada, dolorida e insegura. Sinatra estava doente. Padecia de uma doença tão comum que a maioria das pessoas a consideram banal. Mas quando acontece com Sinatra, ela o mergulha num estado de angústia, de profunda depressão, pânico e até fúria. Frank Sinatra está resfriado.
“Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível – só que pior. Porque um resfriado comum despoja Sinatra de uma joia que não dá para pôr no seguro – a voz dele –, mina as bases de sua confiança e afeta não apenas seu estado psicológico, mas parece provocar também uma espécie de contaminação psicossomática que alcança dezenas de pessoas que trabalham para ele, bebem com ele, gostam dele, pessoas cujo bem-estar e estabilidade dependem dele. Um Sinatra resfriado pode, em pequena escala, emitir vibrações que interferem na indústria do entretenimento e mais além, da mesma forma que a súbita doença de um presidente dos Estados Unidos pode abalar a economia do país.”

Gay Talese, segurando um cálice de borgonha californiano numa mão e um garfo com um pedaço do volumoso bife na outra, estava sentado à iluminada mesa absorto em um calhamaço de papel, e Harold Hayes, editor da Esquire, em Nova York, esperava ouvir alguma palavra dele. Mas ele ainda não tinha algo a dizer; passara boa parte da manhã calado, lendo matérias sobre Frank Sinatra; só que agora, naquele luxuoso hotel em Beverly Hills, parecia ainda mais concentrado, ocasionalmente fitando, através da fumaça e da luz tênue, a caprichada decoração do Beverly Wilshire, sem imaginar que o hotel, instalado num prédio histórico no Wilshire Boulevard, pertinho da Rodeo Drive, viria a ser eternizado pelo filme Pretty Woman, e que Julia Roberts desfilaria seu imenso sorriso pelos halls e corredores que ele acabara de trilhar naquele Inverno de 1965.
Talese estava fazendo um trabalho que lhe agradava e não via a hora de ficar frente a frente com The Voice, o que deveria ocorrer naquela tarde, e voltar para casa com a missão cumprida; mas, então, o telefone tocou, o escritório do cantor cancelando a entrevista, Sinatra andava aborrecido com as manchetes ligando-o à máfia e, além, do mais, estava resfriado. Caso ele se sentisse melhor, e caso também o jornalista se comprometesse a submeter seu texto ao escritório antes de publicá-lo, bem, caso tudo isso, talvez fosse possível remarcar a entrevista para dali a uns dias. Calmamente, sem mergulhar em um estado genuíno de angústia, tampouco fúria, Talese explicou de forma polida que não podia contrariar o direito de seu editor de ser o primeiro a julgar seu trabalho, desejou melhoras e perguntou se poderia ligar dentro de alguns dias, no que recebeu concordância, mas nada de promessas.
Talese sem uma entrevista confirmada não era Picasso sem tinta ou Ferrari sem combustível. Porque isso não o despojava de uma joia que não dá para pôr no seguro – o talento para contar histórias –, não minava as bases de sua confiança nem afetava seu estado psicológico. Quem sabe fosse até melhor. Enquanto aguardava, começou a entrevistar dezenas de pessoas, entre músicos, produtores musicais, executivos de estúdios e de gravadoras, ex e atuais integrantes do staff do cantor, empregados de seus variados empreendimentos – iam de imobiliária a fábrica de componentes de mísseis –, sem usar gravador para não inibir os interlocutores, pois um “repórter é um sedutor que conquista seus personagens como um vendedor convence a clientela”, sequer anotando, na maior parte do tempo, apenas registrando fragmentos de conversa enquanto a pessoa ia ao banheiro ou coisa assim, ou registrando os diálogos somente depois, no hotel. (Leia a continuação clicando no link abaixo).