O cemitério de crianças
Há uma fábula que é mais ou menos como vou contar.
Preservei a ideia, mas criei meu próprio roteiro:
Certa vez, um peregrino cansado das muitas andanças
chegou a um lugarejo que, à distância, pareceu-lhe aprazível, acolhedor. Certo
de que encontraria ali repouso e alimento, já ia apressar o passo quando viu, próximo
da estradinha de chão, um cemitério tão bem cuidado quanto lhe parecera a vila
adiante. Mais do que isso, parecia mesmo bonito, se é possível ver beleza num
lugar ligado à morte, pegou-se pensando o viajante. Algo naquele local o atraía,
ele não resistiu e caminhou até lá.
De perto a sensação
de ordem e capricho era ainda mais forte. As lápides todas branquinhas, limpas
e bem cuidadas, flores viçosas ao pé de cada uma delas, tudo muito perfeito e
estranhamente belo. Foi então que estacou defronte uma delas, chocado diante
de algo tão evidente, mas que ele levara vários minutos para perceber. As lápides
tinham o nome e a idade de cada pessoa enterrada ali. Roberto, 7 anos. Paula, 5
anos. Camila, 6 anos. Elias, 9 anos. Pedro, 4 anos. Rosa, 8 anos. E assim por
diante. O andarilho sentiu-se um pouco tonto, tendo de se escorar na lápide de
Joana, 5 anos.
O que teria
acontecido? Uma praga, talvez, uma doença contagiosa que atacara
especialmente crianças? Ou seria a verdade ainda mais chocante? Um assassino
psicopata? Um grave acidente natural? Não, estas duas últimas hipóteses teriam
de ser descartadas, pois, só agora percebia, havia centenas de túmulos, e
todos de crianças. Seria uma prática local enterrar os inocentes em lugar
diferente do destinado aos adultos? Um ideia terrível gelou-lhe os ossos: e se o povo dali matasse as crianças em alguma espécie de
sacrifício macabro? Ele logo tratou de afastar essa ideia. Não, seria
doentio demais e, afinal de contas, a cidade parecia tão acolhedora, e o
próprio cemitério tão bem cuidado que isso não faria o menor sentido. A fome e
o cansaço começavam a afetar suas ideias, pensou.
O viajante saiu de seu
devaneio ao perceber a aproximação de um homem já em idade avançada que acabara
de depositar flores no túmulo de Vanessa, 6 anos. Poucos segundos de temor foram
sucedidos por um instante de alívio ao perceber no semblante vincado daquele
homem um sorriso que só poderia ser de bondade. Refeito do susto, respondeu ao
aceno do homem, encheu-se de coragem e perguntou:
– Por que só tem
crianças neste cemitério? Alguma epidemia? Um desastre natural? Ou vocês
enterram as crianças em local separado dos adultos? O que está acontecendo
aqui?
O homem não pareceu
surpreso com sua perplexidade, como se esperasse por uma pergunta assim. Com
voz calma e paciente, começou a falar:
– Aqui, quando
nascemos, ganhamos de nossos pais uma espécie de caderneta na qual, tão logo
crescemos o bastante para termos consciência das coisas, passamos a anotar cada
momento memorável de nossas vidas, e quanto tempo ele durou. O primeiro dia de
escola, o primeiro beijo, a formatura, a vitória na gincana, a medalha de honra
ao mérito, o primeiro emprego, o nascimento dos filhos, os encontros com os
amigos, as conversas com os pais ao redor do fogo nas noites de inverno, uma
noite de amor, anotamos tudo de que vale a pena nos lembrarmos. E assim
fazemos por toda nossa vida. Pode ser algo grande, como a compra de uma casa
ou a viagem dos sonhos, mas pode ser algo singelo e precioso, como um abraço
bem sentido, ou a mera troca de olhares com uma pessoa muito especial. Fica
tudo registrado na caderneta, o momento e quanto tempo durou. Quando morremos,
esse tempo é somado e então é determinada nossa verdadeira idade, a soma dos
momentos memoráveis, o tempo que realmente vivemos, e não apenas sobrevivemos
neste mundo.
O viajante não sabia
o que dizer, baixara os olhos para a lápide de José, 4 anos, e começara a
chorar. O homem perguntou-lhe então?
– Quanto tempo você
viveu?
Ele virou-se para
responder, mas já não havia ninguém ali.