Recado de gênio
Eduardo Bueno, o célebre Peninha, amigo, compadre e parceiro de longa data, enviou-me o seguinte e-mail a propósito da crônica postada hoje:
"Só esqueceste de creditar o GENIAL criador das três supracitadas seções, sessões, secções..."
Está feito o genial registro.
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
FUNDO DO BAÚ
No início dos anos 90, o jornal Zero Hora publicava em sua revista dominical três seções com textos bem humorados: “Um Lugar”, “Espécies em Extinção” e “História Universal da Infâmia”. Escrevi vários deles, entre os quais o “Um Lugar” que reproduzo a seguir.
A Casa da Mãe Joana
A Casa da Mãe Joana – que me perdoem os filhos de Joanas – é uma zona. A qualquer hora do dia ou da noite registra um constante e insondável trânsito de indivíduos, a maioria dos quais nem a dona da Casa, a Joana em pessoa, seria capaz de identificar. Como uma genuína área conflagrada, exibe muito barulho, sujeira e um toque de surrealismo. Nela, misturam-se espécimes das mais exóticas tribos. Trata-se de um dos poucos lugares do mundo em que é impossível se sentir solitário.
Encontrar um objeto perdido na Casa, nem pensar. Ele tanto poderá estar dentro da tuba do tio-avô Eraldo (filho, dizem, da primeira Joana de que se tem notícia) quanto no baú de mágico daquele sujeito que afirma pertencer à família, tem o melhor quarto da Casa e ocupa a cabeceira às refeições, mas que ninguém sabe de onde veio. As refeições, por sinal, provocam cenas dantescas. Melhor esquecê-las. Não seria elegante falarmos aqui de temas como canibalismo.
A Casa da Mãe Joana é um terreno no qual confraternizam pervertidos, corruptos, vigaristas, aproveitadores em geral e mesmo algumas estirpes politicamente corretas. A Mãe Joana tudo permite, nada vê. Seus domínios há muito se expandiram. Tomaram conta do bairro, da cidade, da região e, finalmente, do País. Um dia a gandaia se generalizou. O Brasil transformou-se numa imensa Casa, e lá estava Mãe Joana, pronta para tomar conta do pedaço.
Ao longo dos anos, ocasionalmente apareceu alguém disposto a botar ordem na Casa. Perda de tempo. Em seguida, como toda mãe que se preza, ela desautorizava qualquer repreensão e passava a mão na cabeça dos filhos errantes. A Mãe Joana sobreviveu a vários golpes, a muitos dígitos de inflação, a uma roubalheira desmedida, sempre com a mesma fleuma. Há quem diga que, não fosse a Mãe Joana, o País entraria nos eixos. Mas Mãe Joana é imperecível.
A Casa da Mãe Joana é como sabonete de quartel: todos põem a mão. Tentar entender o mecanismo que move o cotidiano da Casa da Mãe Joana converte-se em esforço inútil. Quando algo se revela previsível, lógico, Joana se encarrega de desfazer o mal-entendido. “Tá pensando que isso aqui é o quê? A Casa da Sogra?” – esbraveja. Ela não admite comparações. A Casa da Sogra é noutro lugar, a despeito de eventuais semelhanças. Algumas sogras se chamam Joana, é verdade, e tentam imitar a original, mas nenhuma tem o seu talento para o inverossímil e para a contemplação do absurdo. A Sogra também é pródiga em abrigar confusão, mas ainda é possível entender o funcionamento de sua Casa e identificar os protagonistas.
Consta do imaginário do Rio (aquela parte do Rio que ainda se dá ao luxo de ter imaginário) uma Casa da Mãe Joana real, refúgio de boêmios, deserdados e sonhadores. Consta ainda que um dia a Casa migrou para Brasília, onde Joana acabou por se sentir incomodada com a vizinhança. Mas, claro, o imaginário é por vezes apenas um punhado de lendas com arrogância de realidade.
Nos últimos anos pouco se tem ouvido falar na Mãe Joana. Dizem que se desiludiu com a vulgarização de suas teses, especialmente no Planalto. “Hoje todos se acham no direito de esculhambar a Casa”. Isso a derrotou. A Mãe Joana foi vista pela última vez num boteco da Avenida Atlântica, em Copacabana. Vestia-se como vedete de teatro de revista em versão punk, bebia sem parar e gritava com orgulho: “Eu fui a primeira!”. Os habitués do local não pareciam compreendê-la.
Publicado originalmente no jornal Zero Hora em 2 de janeiro de 1994.
No início dos anos 90, o jornal Zero Hora publicava em sua revista dominical três seções com textos bem humorados: “Um Lugar”, “Espécies em Extinção” e “História Universal da Infâmia”. Escrevi vários deles, entre os quais o “Um Lugar” que reproduzo a seguir.
A Casa da Mãe Joana
A Casa da Mãe Joana – que me perdoem os filhos de Joanas – é uma zona. A qualquer hora do dia ou da noite registra um constante e insondável trânsito de indivíduos, a maioria dos quais nem a dona da Casa, a Joana em pessoa, seria capaz de identificar. Como uma genuína área conflagrada, exibe muito barulho, sujeira e um toque de surrealismo. Nela, misturam-se espécimes das mais exóticas tribos. Trata-se de um dos poucos lugares do mundo em que é impossível se sentir solitário.
Encontrar um objeto perdido na Casa, nem pensar. Ele tanto poderá estar dentro da tuba do tio-avô Eraldo (filho, dizem, da primeira Joana de que se tem notícia) quanto no baú de mágico daquele sujeito que afirma pertencer à família, tem o melhor quarto da Casa e ocupa a cabeceira às refeições, mas que ninguém sabe de onde veio. As refeições, por sinal, provocam cenas dantescas. Melhor esquecê-las. Não seria elegante falarmos aqui de temas como canibalismo.
A Casa da Mãe Joana é um terreno no qual confraternizam pervertidos, corruptos, vigaristas, aproveitadores em geral e mesmo algumas estirpes politicamente corretas. A Mãe Joana tudo permite, nada vê. Seus domínios há muito se expandiram. Tomaram conta do bairro, da cidade, da região e, finalmente, do País. Um dia a gandaia se generalizou. O Brasil transformou-se numa imensa Casa, e lá estava Mãe Joana, pronta para tomar conta do pedaço.
Ao longo dos anos, ocasionalmente apareceu alguém disposto a botar ordem na Casa. Perda de tempo. Em seguida, como toda mãe que se preza, ela desautorizava qualquer repreensão e passava a mão na cabeça dos filhos errantes. A Mãe Joana sobreviveu a vários golpes, a muitos dígitos de inflação, a uma roubalheira desmedida, sempre com a mesma fleuma. Há quem diga que, não fosse a Mãe Joana, o País entraria nos eixos. Mas Mãe Joana é imperecível.
A Casa da Mãe Joana é como sabonete de quartel: todos põem a mão. Tentar entender o mecanismo que move o cotidiano da Casa da Mãe Joana converte-se em esforço inútil. Quando algo se revela previsível, lógico, Joana se encarrega de desfazer o mal-entendido. “Tá pensando que isso aqui é o quê? A Casa da Sogra?” – esbraveja. Ela não admite comparações. A Casa da Sogra é noutro lugar, a despeito de eventuais semelhanças. Algumas sogras se chamam Joana, é verdade, e tentam imitar a original, mas nenhuma tem o seu talento para o inverossímil e para a contemplação do absurdo. A Sogra também é pródiga em abrigar confusão, mas ainda é possível entender o funcionamento de sua Casa e identificar os protagonistas.
Consta do imaginário do Rio (aquela parte do Rio que ainda se dá ao luxo de ter imaginário) uma Casa da Mãe Joana real, refúgio de boêmios, deserdados e sonhadores. Consta ainda que um dia a Casa migrou para Brasília, onde Joana acabou por se sentir incomodada com a vizinhança. Mas, claro, o imaginário é por vezes apenas um punhado de lendas com arrogância de realidade.
Nos últimos anos pouco se tem ouvido falar na Mãe Joana. Dizem que se desiludiu com a vulgarização de suas teses, especialmente no Planalto. “Hoje todos se acham no direito de esculhambar a Casa”. Isso a derrotou. A Mãe Joana foi vista pela última vez num boteco da Avenida Atlântica, em Copacabana. Vestia-se como vedete de teatro de revista em versão punk, bebia sem parar e gritava com orgulho: “Eu fui a primeira!”. Os habitués do local não pareciam compreendê-la.
Publicado originalmente no jornal Zero Hora em 2 de janeiro de 1994.
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
JORNALISMO
O português da última página
Lá pelo final dos anos 70, início dos 80, uma revista hoje extinta brilhava sozinha no mercado brasileiro das masculinas da era pré-Playboy. O diretor de redação era Wagner Carelli. A última página da publicação costumava ser ocupada por textos de colaboradores variados. Um dia, Wagner, que ainda não completara 30 anos de idade, mas já revelara seu imenso talento, cruzou nos corredores da editora com o chefe, mais experiente, famoso, e seu amigo de longa data. “Quem diabos é aquele português que você colocou na última página?” – perguntou o amigo. Tratava-se de um completo desconhecido. Aparentemente, não fazia sentido dedicar espaço tão nobre a alguém sem projeção. Carelli não vacilou: “Ele escreve bem pra caramba”, respondeu, mas não foi levado muito a sério.
Alguns meses depois, o tal português voltou a freqüentar as páginas e o diretor de redação foi novamente questionado pelo colega. “Por que você insiste com este português do qual ninguém nunca ouviu falar?” Carelli limitou-se a repetir: “Ele escreve bem pra caramba.” Com pequenas variações, a cena se repetiu várias vezes nos meses seguintes. Tornara-se um ritual. Saía um texto do português, Carelli era interpelado pelo amigo, respondia do mesmo jeito. Aos poucos, acrescentou mais ousadia às suas palavras: “Ele escreve bem pra caramba. Na verdade, é um dos autores que melhor escreve em língua portuguesa hoje em dia.” O colega balançava a cabeça em sinal de desaprovação. Às vezes retrucava: “Não vejo nada de mais no texto deste cara.”
O tema tornou-se tedioso, mas agora era um jogo do qual nenhum dos dois conseguia sair. A cada investida, aumentavam os adjetivos de ambos os lados. “O que você viu neste porra de português?” “Ele escreve bem pra caramba, e vou te dizer mais, ele ainda vai ganhar o Nobel”. O limite havia sido ultrapassado. A engolir o português o colega já se acostumara, mas ouvir tal disparate já era demais. O resultado foi uma grande gargalhada. Daí em diante, a história do Nobel tornou-se a chave do amistoso bate-boca.
Uma das últimas vezes em tocaram no assunto foi quando o português esteve no Brasil e visitou a editora. Ele estava muito grato pela confiança nele depositada. Já havia publicado dois livros em seu país, que podiam ser adquiridos no Brasil, mas em edições caras e limitadas: Levantando do Chão e Memorial do Convento. Preparava o lançamento de Jangada de Pedra. Ainda não podia se dar ao luxo de viver só dos livros, precisava dos frees para sobreviver. Chamava-se José Saramago, nome que, para a maioria, era apenas o do português da última página.
Como sabemos, o tal português virou best-seller, escreveu obras-primas e ganhou o Nobel. Essa história é pouco conhecida. Por timidez ou alguma outra razão, Carelli a manteve restrita aos amigos e jamais publicou qualquer linha a respeito. Mas ilustra bem o quanto é importante em atividades tão subjetivas quanto o jornalismo ou a literatura ser dotado de uma espécie de radar para talentos e potencialidades. Este faro, por certo, vale muito mais do que simplesmente examinar a ficha repassada pelo RH e concluir que a fluência em idioma estrangeiro ou um certificado de MBA implicam necessariamente uma grande capacidade prática de exercer seu ofício.
Ainda bem que no jornalismo tais requisitos ainda são menos valorizados do que em outras profissões. Até porque corremos o risco de formar gerações que transitam com desenvoltura pelo mundo virtual, mas não revelam o mesmo desembaraço na vida real. Que sabem tudo da língua inglesa, mas não dominam o idioma pátrio. Basta ler os textos de algumas publicações. Editores têm de ficar atentos. Ocasionalmente, surge um português na última página.
Publicado originalmente no site coletiva.net
O português da última página
Lá pelo final dos anos 70, início dos 80, uma revista hoje extinta brilhava sozinha no mercado brasileiro das masculinas da era pré-Playboy. O diretor de redação era Wagner Carelli. A última página da publicação costumava ser ocupada por textos de colaboradores variados. Um dia, Wagner, que ainda não completara 30 anos de idade, mas já revelara seu imenso talento, cruzou nos corredores da editora com o chefe, mais experiente, famoso, e seu amigo de longa data. “Quem diabos é aquele português que você colocou na última página?” – perguntou o amigo. Tratava-se de um completo desconhecido. Aparentemente, não fazia sentido dedicar espaço tão nobre a alguém sem projeção. Carelli não vacilou: “Ele escreve bem pra caramba”, respondeu, mas não foi levado muito a sério.
Alguns meses depois, o tal português voltou a freqüentar as páginas e o diretor de redação foi novamente questionado pelo colega. “Por que você insiste com este português do qual ninguém nunca ouviu falar?” Carelli limitou-se a repetir: “Ele escreve bem pra caramba.” Com pequenas variações, a cena se repetiu várias vezes nos meses seguintes. Tornara-se um ritual. Saía um texto do português, Carelli era interpelado pelo amigo, respondia do mesmo jeito. Aos poucos, acrescentou mais ousadia às suas palavras: “Ele escreve bem pra caramba. Na verdade, é um dos autores que melhor escreve em língua portuguesa hoje em dia.” O colega balançava a cabeça em sinal de desaprovação. Às vezes retrucava: “Não vejo nada de mais no texto deste cara.”
O tema tornou-se tedioso, mas agora era um jogo do qual nenhum dos dois conseguia sair. A cada investida, aumentavam os adjetivos de ambos os lados. “O que você viu neste porra de português?” “Ele escreve bem pra caramba, e vou te dizer mais, ele ainda vai ganhar o Nobel”. O limite havia sido ultrapassado. A engolir o português o colega já se acostumara, mas ouvir tal disparate já era demais. O resultado foi uma grande gargalhada. Daí em diante, a história do Nobel tornou-se a chave do amistoso bate-boca.
Uma das últimas vezes em tocaram no assunto foi quando o português esteve no Brasil e visitou a editora. Ele estava muito grato pela confiança nele depositada. Já havia publicado dois livros em seu país, que podiam ser adquiridos no Brasil, mas em edições caras e limitadas: Levantando do Chão e Memorial do Convento. Preparava o lançamento de Jangada de Pedra. Ainda não podia se dar ao luxo de viver só dos livros, precisava dos frees para sobreviver. Chamava-se José Saramago, nome que, para a maioria, era apenas o do português da última página.
Como sabemos, o tal português virou best-seller, escreveu obras-primas e ganhou o Nobel. Essa história é pouco conhecida. Por timidez ou alguma outra razão, Carelli a manteve restrita aos amigos e jamais publicou qualquer linha a respeito. Mas ilustra bem o quanto é importante em atividades tão subjetivas quanto o jornalismo ou a literatura ser dotado de uma espécie de radar para talentos e potencialidades. Este faro, por certo, vale muito mais do que simplesmente examinar a ficha repassada pelo RH e concluir que a fluência em idioma estrangeiro ou um certificado de MBA implicam necessariamente uma grande capacidade prática de exercer seu ofício.
Ainda bem que no jornalismo tais requisitos ainda são menos valorizados do que em outras profissões. Até porque corremos o risco de formar gerações que transitam com desenvoltura pelo mundo virtual, mas não revelam o mesmo desembaraço na vida real. Que sabem tudo da língua inglesa, mas não dominam o idioma pátrio. Basta ler os textos de algumas publicações. Editores têm de ficar atentos. Ocasionalmente, surge um português na última página.
Publicado originalmente no site coletiva.net
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