quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

JORNALISMO LITERÁRIO

Gay Talese é sempre
uma ótima notícia

(Texto publicado originalmente na revista Aplauso) 


Depois de me engalfinhar por alguns minutos com a conexão do fone de ouvido e de aceitar o fato de que mais um equipamento novo, e caro, não funciona adequadamente, e de maldizer os fabricantes de tudo que não funciona adequadamente, olhei para o relógio e pensei no meu editor chegando à sua mesa de trabalho, pela manhã, e esbravejando ainda mais ao não encontrar o meu texto em seu e-mail. Flávio Ilha é um homem experimentado, inclusive nos círculos do poder, tendo sido repórter na capital federal por muitos anos e, após passar por tão variadas e ricas experiências, tolerar alguns atrasos de um resenhista veterano talvez não seja assim tão exasperante. Ele tem sido compreensivo, quem sabe porque eu tenha crédito, e um raro atraso em função de compromissos profissionais de conhecimento público seja mesmo aceitável.

          O fato é que deixei para o último minuto, pensei em escrever a mão e depois pedir para alguém transcrever enquanto eu dormia por um período decente, só para quebrar a rotina dos últimos dias. Valer-me da caneta teria sido uma bela homenagem ao autor do livro que me dispus a comentar – como o foi abrir o texto desse modo –, ainda que qualquer comparação esteja a anos-luz de todos nós, uma vez que se trata de um dos maiores jornalistas de que se tem notícia, um ícone, alguém capaz de fazer jovens enveredarem pelo caminho tortuoso da cobertura dos fatos, tanto quanto de devolver aos mais experientes um genuíno orgulho pelo ofício.

            Em Vida de Escritor, Gay Talese, figura de proa do New Journalism, autor de clássicos como Fama & Anonimato – que inclui o célebre perfil de Frank Sinatra –, O Reino e o Poder, Honrados Mafiosos e A Mulher do Próximo, conseguiu transformar o que deveria ser uma mera autobiografia, de modo geral escoadouro de vaidades, instrumento de acertos de contas e corolário de queixas, auto-indulgência e o sentimento sincero de ter os pecados redimidos e as virtudes amplificadas pela posteridade, bem, o velho o bom Talese converteu o que deveria ser uma mera autobiografia em uma lição de bom jornalismo, mas, acima de tudo, em exemplo de humildade, autocrítica e distanciamento, qualidades essenciais, mas poucas vezes vistas nos profissionais do ramo. Como o grande jornalista que é, permitiu-se falar de sua trajetória, mas contada pelos personagens de suas reportagens. O bom jornalista, sabe-se, mantém-se fora da cena.

              Não é pouca coisa na era do quanto-mais-visível-melhor, de comentaristas demais para leitores de menos, de uma internet que não tem limites, para o bem e para o mal, servindo de canal para as boas práticas da informação, mas também de via expressa para o exibicionismo barato. Nunca tantos deram tantos palpites sobre tantas coisas das quais não entendem, e sempre colocando a persona à frente da informação. Gay Talese é o que é, como tantos que são o que são, em boa parte por ter consciência de seu tamanho e de suas limitações numa sociedade de consumo rápido, em que a notícia é apenas mais um produto a ser devorado. O segredo é resistir a isso a seu modo. Talese relutou em passar do manuscrito à máquina de escrever, e daí ao computador, retornou à máquina, depois ao manuscrito, até conseguir equilibrar os meios de modo a que não se sobrepusessem ao conteúdo. Sempre escreveu sem pressa, sempre escreveu magistralmente.

            Vida de Escritor inclui belíssimas “matérias”, como se diz em jornalismo, sobre temas tão distintos quanto a rotina de uma jovem chinesa em seu país depois de perder um pênalti na decisão da Copa do Mundo contra os EUA em momento de tensão entre as duas nações, um retrato da passagem da América do racismo assumido ao dissimulado, a atribulada rotina de um casal que acabou em castração, neste caso, literalmente, a história de um prédio supostamente amaldiçoado que levou à bancarrota vários restaurantes que nele insistiam em se instalar, entre outras histórias interessantes que servem de pano de fundo – ou de frente – para sua própria trajetória, como repórter do New York Times por uma década, como freelance da igualmente emblemática New Yorker, ou ainda como o magnífico escritor bissexto que escolheu ser. Gay Talese nunca foi tão Gay Talese como neste livro, o que é uma ótima notícia.

Foto de Jerry Bauer/Divulgação

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Vida de Escritor
Gay Talese
Companhia das Letras
16 x 23 cm
512 páginas
R$ 62,50

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