quarta-feira, 2 de julho de 2008

TRÊS SORVETES E UMA TAÇA

Augusto Nunes

"Você não vai ouvir o jogo do Brasil? Pensei que gostasse de futebol", estranhou minha mãe quando avisei que estava de saída para a sorveteria. Ela vai ouvir o jogo contra a Suécia?, também estranhei ao vê-la de pé a um metro do rádio, com a caçula no colo e querendo saber dos dois filhos sentados no sofá como era mesmo o nome do juiz. Pensei que não gostasse de futebol.

Eu gostava. Aos 8 anos, ia me entendendo melhor com a bola, meu pai contara que eu era torcedor do Palmeiras e tinha decorado antes da estréia contra a Áustria os nomes dos 22 craques da Seleção. Gostava mais de jogar futebol que de ouvir, mas vinha acompanhando as batalhas da pátria em chuteiras na Guerra da Suécia pelo rádio da minha avó, uma imigrante italiana que se juntara à torcida brasileira ao descobrir que o elenco incluía um Bellini e um Mazzolla. Sabia que o time canarinho estava fazendo bonito, que Garrincha destroçara o futebol científico da comunistada russa e que, naquele domingo, o duelo em Estocolmo decidiria não só a Copa, mas também diria se o Brasil tinha jeito.

O que não sabia é que seriam declarados traidores da nação em perigo, e sumariamente condenados à execração perpétua, sem direito a recursos julgados em instâncias superiores ou apelações a tribunais internacionais, todos os brasileiros, incluídos os recém-nascidos e os mortos do mês, os índios da Amazônia e os imigrantes procedentes de remotíssimas paragens, as normalistas oferecidas e as carmelitas descalças, os inimputáveis em geral e os loucos de hospício em particular, todos os brasileiros que, no dia 19 de junho de 1958, pensassem em qualquer outra coisa além da conquista da Copa. Não sabia disso. E eu também gostava muito de sorvete. E acordei pensando não nos dribles de Garrincha, mas num palito de limão.

“Volto antes da metade do primeiro tempo”, comecei a explicar quando fui aparteado por um dos irmãos. “Não dá, são quinze quarteirões. Fala logo que não gosta de futebol”, provocou. Acusei-o de ter passado na casa de um amigo a tarde do duríssimo combate contra o País de Gales. “Só que ouvindo o rádio e jogando futebol-de botão, não tomando sorvete”, ele mandou no ângulo. Esperei em vão pela cobertura da velha Amabile, sentada na cadeira de balanço. Ela continuou olhando o rádio. “Esse moleque é meio bobo”, resumiu o pensamento geral meu irmão mais velho. Estava pronto para entrar de carrinho quando meu pai entrou em casa e os dois times em campo. Aproveitei a distração do inimigo, fingi que recuava para proteger a retaguarda e invadi o quarto. Precisava de uma camisa. O dia estava meio frio.

O inverno ia chegando ao meio, e ainda havia nos sertão paulista outras estações além do verão que acabaria eternizado pelo oceano de cana que engoliu primeiro as plantações de café, depois os laranjais e enfim, quando já não restavam campos a afogar, até os casarões das fazendas, as tulhas e os canteiros, as hortas e os quintais. Vesti uma camiseta verde, sem distintivo nem número nas costas. Continuei descalço. E com aquele calção detestável que todos os menores de 10 anos usavam, feito pelas mães e tias com a amputação, milímetros acima do joelho, das pernas de alguma calça de adulto severamente castigada pelo tempo.

Se me tratassem com mais cortesia, eu talvez tivesse deixado o sorvete para depois do jogo. Sob pressão é que não fico em casa mesmo. E não vou trazer nem um palito para aquela gente. Nem para a avó, radicalizei no momento em que o juiz, um francês chamado Messiê Guiguê conforme a voz no rádio, apitou o começo da partida e da caminhada rumo à sorveteria. E então notei a paisagem: não havia ninguém na rua da minha casa.

Nem na General Glicério nem Marechal Deodoro, espantei-me no segundo minuto da final e na primeira esquina. Nem em qualquer outra rua de Taquaritinga, fiquei assustado aos 4 do primeiro tempo, quando cheguei ao cruzamento da General Glicério com a Duque de Caxias junto com o gol da Suécia marcado na calçada da casa da família Curti e transmitido pelo locutor, sem entusiasmo, pelo rádio da sala do pai do João Perrone.

Haviam sumido das calçadas os quase 10 mil habitantes, e todos os carros estavam nas garagens dos donos ou encostados no meio-fio. O único sinal de vida era a voz do locutor. Melhor desistir, resolvi. Caminhei com Didi, ambos lentamente, ele em direção do meio de campo, com a cabeça erguida, a bola na mão esquerda e tranqüilizando o time, eu de volta para casa, cabisbaixo, de mãos abanando e tentando preparar-me para a capitulação humilhante que só não foi consumada porque, aos 9 minutos, Vavá empatou na varanda dos Benatti, a última antes da esquina com a Marechal Deodoro.

Todo mundo estava ouvindo o jogo, confirmou a universalização da voz do locutor que se sobrepunha ao berreiro coletivo, a mesmíssima voz agora vinda de todos os pontos cardeais, do céu e da terra, multiplicada por dezenas, centenas, milhares de aparelhos ligados na mesma estação, atravessando todas as janelas que todas as famílias haviam escancarado para que até os jardins, os pomares ou algum transeunte desavisado testemunhassem, sem perderem um único centésimo de segundo, o triunfo da Seleção incomparável. E então os ouvidos atentos como os olhos do goleiro Gilmar captaram o oportuníssimo recado sonoro: a barulheira do lado ocupado só por casas era bem maior que a do outro, onde ficavam a sede do Clube Imperial, o prédio da Caixa Econômica e dois bares. Todos estavam fechados.

É só seguir o caminho das casas, deslumbrei-me ao compreender que poderia tomar sorvete e ouvir jogo, e depois desconcertar a caipirada lá na sala de visitas com o mistério da minha ubiqüidade, porque nenhum parente sabia do que eu acabara de saber e não contaria nem sob tortura. Montei o novo plano com a serenidade de um Feola. O roteiro redesenhado pelas circunstâncias agora passaria ao largo de clubes, repartições públicas, associações, bares ou botequins, estabelecimentos comerciais, escolas – tudo que pudesse estar fechado ou desprovido de aparelhos de rádio.

Subi outra vez pela General Glicério, virei à esquerda com a elegância sutil de Nilton Santos na Duque de Caxias, arranquei rente à lateral direita como Djalma Santos, parei feito Orlando diante do meia-direita francês na esquina com a Campos Salles, virei o jogo para a direita como Zito e corri para o abraço quando Vavá desempatou debaixo da segunda janela do doutor Luizão.

O Brasil descia para o vestiário e eu driblava o terreno da Força e Luz para virar à a esquerda na esquina da Campos Salles com a Visconde do Rio Branco. O jogo estava no intervalo quando enxerguei as portas da Sorveteria do Abbud. Hoje é meu dia, avisaram as portas abertas. Além dos quatro homens sentados na mesa perto do rádio, que nem me olharam, lá estava um dos donos, o irmão mais alto e ainda mais magro, acho que se chamava Elias, que ouviu o pedido sem deixar de ouvir o comentarista.

Antes de terminar o palito de limão, descobri que estava sintonizado na Cadeia Verde-Amarela, liderada pela Bandeirantes, e que o primeiro tempo fora transmitido por Pedro Luiz. Edson Leite narraria o segundo, soube no palito seguinte, outra vez de limão. A voz agora menos veloz, mais grave e igualmente soberba avisou que estavam começando os 45 minutos que decidiriam a sorte do Brasil na Copa do Mundo. Pedi uma casquinha de abacaxi, só para variar, levantei-me certo de que a taça já era nossa e fiquei com cara de campeão no momento do golaço de Pelé ao lado da casa do Turqueta, pai do Zé Ditão e do Tonho Mariano, no fim do primeiro quarteirão do caminho de volta.

Zagallo encaçapou de bico perto da jabuticabeira da minha professora do jardim da infância, nem me abalei com o segundo da Suécia, marcado em frente do casarão da família Mantese em clamoroso impedimento, como assinalou Edson Leite. Resolvi ganhar tempo para entrar em casa no apito final, mas nem pensei em administrar o tempo, isso só existiria no futuro, não naquele junho em que o negócio era jogar pra frente, ou ficar driblando meio mundo, e por isso resolvi aproveitar a falta de espectadores para reproduzir os melhores lances. Saí pela direita como Garrincha na esquina da Duque de Caxias com a General Glicério, percebi que voltara ao ponto de partida depois da quarta arrancada, sempre pela direita, e achei mais sensato avançar sem pressa como Didi, ultrapassei o Chevrolet rabo de peixe do doutor Luizinho Barbosa, encobri um Mercury preto com o chapéu sem bola igualzinho ao de Pelé a caminho do quinto gol, estufei a rede no portão de casa e entrei na sala gritando “Brasil!”

"O único do mundo que não ouviu o jogo", debochou o mais velho. "Não gosta de futebol", o outro pegou-me de novo no tornozelo. Revidei com um elogio ao sorvete, a narração dos cinco gols, um sorriso de campeão do mundo e aquele sorriso no olhar só concedido a quem, ouvindo o rádio, viu como jogavam os heróis de 1958".

Publicado originalmente no Jornal do Brasil

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