Velhas imagens
Em um dos primeiros registros fotográficos de minha existência apareço de tiptop claro e quente, gorro de lã, sentado em um sofá escuro de tecido pesado. Provavelmente fui ajeitado várias vezes até conseguir me manter naquela posição o tempo suficiente para meu pai fazer a foto. Ainda assim, minha mãe teve de se esgueirar por trás do sofá e segurar a gola de meu macacão. Tenho o olhar perplexo dos bebês quando convocados a ficarem quietos por um breve instante enquanto os adultos acionam um mecanismo incompreensível.
Em outro instantâneo estou de camiseta sem mangas, branca e com o escudo do Grêmio no meio, sentado em um pedaço de tecido ou papel num montinho de grama em meio às lajes da calçada. Estou próximo do meio-fio, cercado por outros tufos de capim, e atrás de mim há uma armação de varetas daquelas destinadas a sustentar o crescimento de uma árvore recém-plantada. Olho para a esquerda. Seria minha mãe a despertar minha atenção enquanto meu pai produzia a foto? Ou quem sabe fosse de minha avó, ou de uma vizinha curiosa com a montagem da cena, aquele meio corpo feminino de pé, o equilíbrio mantido por um leve cruzar de pernas, no canto superior esquerdo, vestindo saia branca plissada ou pregueada logo abaixo do joelho, supostamente recostada ao muro baixo de nossa casa, ou da de um vizinho, próxima a um portão escuro, depois do qual se seguiam um muro, outra entrada, uma parede branca e mais uma porta escura. Talvez fosse minha mãe, mas, neste caso, de quem seria aquela mão direita estendendo-se em minha direção a pequena distância, pronta para me amparar caso eu desabasse para o lado certo, ou lado errado, o lado da rua de paralelepípedos? A mão surge à meia altura à direita da foto, cortada tão logo acaba a extensão dos dedos.
Registro posterior me mostra recostado, acuado talvez seja um termo mais preciso, à porta da frente da casa de madeira. A porta é amarela, a parede laranja forte – ou coral, como se dizia –, mas nada disso aparece na foto em preto-e-branco – como as outras duas, sendo que a do sofá ganharia versão colorizada. Eu já não era bebê, mas era bem pequeno. Estava zangado, chorava de raiva enquanto meu pai registrava minha fúria e fraqueza. Lembro de ter decidido fugir de casa, saíra pela frágil porta dos fundos, contornara o pátio lajeado pelo lado esquerdo, mais largo, que conduzia à garagem, e chegara até a frente, mas não passara pelo portão baixo de ferro. Ainda que tivesse altura para escalá-lo, estava de pijama, não carregava roupas, água, comida ou dinheiro, e mesmo uma criança sabe que não se vai longe assim. Era uma manhã de domingo. Tomara uma atitude intempestiva, e agora não sabia o que fazer. Havia jurado nunca mais voltar àquela casa ou àquela gente que me magoara. Não podia retroceder, mas também não tinha como seguir adiante. Para completar, meu pai eternizava minha humilhação. E ainda por cima chovia.
Em outra foto, esta bem menos dramática e de muito tempo depois, tenho 14 anos, sou magro a não poder mais, os cabelos longos e cacheados. Uso relógio no pulso esquerdo – embora não seja canhoto, pouco depois passei a colocá-los no lado direito, o que mantenho até hoje. Deve ser um Sorel que herdei de meu avô, creio que ainda não ganhara meu primeiro relógio zero quilômetro, um Technos dourado presenteado por meio pai, com estojo vermelho forrado de cetim branco, que usei até o perder em assalto à mão armado, numa madrugada fria, já no início dos anos 80.
Visto-me com o alegre excesso dos ’70. Camiseta branca de mangas curtas, de malha canelada, com estampa em pequenas flores nas cores rosa e verde, e um cordão na gola, transformado em pequeno tope como o de um sapato amarrado. As calças são de brim tergalizado, rosa quase choque – chamava-se rosa antigo –, boca-de-sino, cós alto e bem justa, feita na costureira dos rapazes do bairro, que confeccionara para mim outras calças iguais em lilás, azul calipso e bordô. Estou encostado no Gordini de meu pai, placas laranja AJ-9757. O carro é branco, tem sinais de lanternagem no lado esquerdo, oposto ao qual me recosto. Estamos, o Gordini e eu, na alameda de um parque, o piso é uma mistura de paralelepípedo e chão batido, o meio-feio é de pedras pintadas de cal, há árvores aos lados e ao fundo, onde também aparece um Fusca branco estacionado na transversal, e mais ao fundo ainda os morros a emoldurar a cidade.
São apenas fragmentos, fotos encontradas ao acaso, registros de uma vida, coisa pouca, mas nunca coisa pouca. Basta uma breve olhada para o momento retornar em todos os detalhes. Por isso uma fotografia jamais será substituída por qualquer outro meio, como nada substitui um livro. E nada substitui uma vida.
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