O ESPETÁCULO DA IMPUNIDADE SELETIVA
Augusto Nunes
Surpreendido pelo desfecho da Operação Satiagraha, que desbaratou a maior e mais atrevida quadrilha da história do sistema financeiro nacional, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, dispensou-se de comentários sobre as espantosas descobertas da Polícia Federal. Nenhuma frase sobre o desfile de delinqüências bilionárias. Nenhuma palavra sobre o prontuário dos integrantes da comissão de frente. Nenhuma perplexidade com a propina oferecida a um delegado por comparsas de Daniel Dantas, entre uma e outra alusão insultuosa ao STF. O ministro não estava preocupado com o conteúdo das revelações, mas com a forma da captura. E esqueceu os bandidos para condenar os xerifes.
“A espetacularização das prisões é evidente e dificilmente compatível com o Estado de Direito”, irritou-se. Sim, a PF voltou a escorregar em exageros reprováveis e exibicionismos circenses. Nada justifica, por exemplo, a idéia de prender a jornalista Andréa Michael, da Folha de S. Paulo, por ter cometido um furo de reportagem. Nada justifica a incorporação de uma equipe da TV Globo ao grupo de policiais encarregados de cumprir os mandados judiciais. Feita a ressalva, o Brasil decente comunica ao presidente do STF que o espetáculo da impunidade seletiva, protagonizado pelo Poder Judiciário, é tão evidente quanto a espetacularização das prisões – e mais gritantemente incompatível com o Estado de Direito.
Duram pouco esses intervalos preenchidos por imagens que mostram um Daniel Dantas saindo da parte traseira do camburão com as algemas camufladas pelo paletó, um Naji Nahas aparvalhado com a iminência da primeira noite no catre, ou um Celso Pitta de pijama abrindo a porta do apartamento para ouvir, estremunhado, a voz de prisão. Artistas dessa categoria nunca ficam em cena por muito tempo. Logo são devolvidos às coxias pelo reinício do interminável espetáculo da impunidade. Não seria diferente desta vez.
Horas depois de solidarizar-se com os delinqüentes submetidos a humilhações por policiais desalmados, o presidente do STF determinou a soltura de Dantas e 11 comparsas. A Polícia Federal prendeu-o de novo. O presidente do STF tornou a tirá-lo da cadeia. O certo é que, em poucos dias, a turma inteira estará liberada para oferecer propinas a policiais, monitorar as ações da bancada suprapartidária infiltrada no Congresso, trocar idéias com advogados espertalhões ou estafetas do PT fantasiados de bacharel, pensar na melhor maneira de seduzir juízes, desembargadores ou ministros togados.
Os brasileiros comuns também recriminariam o comportamento dos captores se não os angustiassem a sensação de que respeitar a lei é coisa de otário e, sobretudo, a certeza de que as cadeias do país não aceitam hospedar quadrilheiros ricaços, com dinheiro de sobra para contratar advogados eficientes e amigos influentes ao alcance do celular. O castigo jamais vai além das prisões espetacularizadas. É um consolo para os cidadãos honestos. É um abuso intolerável para Gilmar Mendes.
Intolerável, para os incumbidos de fazer Justiça, deveria ser a obscena indulgência que contempla figuras como Daniel Dantas, Naji Nahas ou Celso Pitta. A Operação Satiagraha não fez mais que acrescentar alguns metros à pilha de provas acumuladas contra os integrantes do bando desde o fim do século passado. Sobram razões e evidências para prendê-los. O que falta é vontade de punir, sobretudo nas camadas superiores do Judiciário. Gilmar Mendes quer saber por que os policiais federais algemaram os capturados e permitiram que fossem filmados. O país que pensa quer saber o que espera a Justiça para trancafiá-los em celas providas de câmeras de vigilância.
“Só tenho medo da Polícia Federal”, disse Dantas em entrevista à revista Piauí, disfarçando com um sorriso esse temor genuíno. “A gente só se preocupa com a primeira instância, porque no STF ele resolve”, explicaram os emissários do banqueiro ao delegado que tentavam subornar. Presos por ordem de um juiz federal, os quadrilheiros foram soltos pelo presidente do Supremo. A imagem do Judiciário não ficou melhor. Ficará consideravelmente prejudicada se algum criminoso transformar o habeas corpus num salvo-conduto para a primeira etapa da viagem para fora do Brasil – e para longe da cadeia. Como fez Salvatore Cacciolla.
Resgatar Cacciolla do cárcere foi um erro bisonho do STF. Qualquer reprise do caso será mais que outro equívoco lastimável. Será uma reincidência criminosa.
Ampliação de texto publicado originalmente no Jornal do Brasil
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