sexta-feira, 18 de julho de 2008

Etelvino, o literal

Ninguém que o conhecesse estranharia, caso tivesse a oportunidade de assistir à insólita cena de Etelvino Peixoto entregando o chapéu aos cuidados do noviço Adamastor, retirando o sobretudo preto de lã, inverossímil na canícula latina, e se acomodando no sofá cor de vinho com listras douradas do arcebispado de Recife e Olinda. Os três dias em lombo de burro desde Pontal dos Errantes não lhe subtraíra o otimismo. Tampouco dava sinais de desânimo. Se era isto que tinha de fazer para ser ouvido, era isto que faria. Sua determinação era notória, tanto quanto a incapacidade de discernir tons de voz ou intenções ocultas, por isso as 4.499 almas do lugarejo que já fora um importante entreposto comercial e nos últimos anos virara paragem de última chance entre a civilização e a impossível caatinga consideraram natural tal empreendimento.

Etelvino, o Literal, como era conhecido, já dera incontáveis provas de uma simpática demência, e todos a ela se acostumaram com invulgar despudor. Antes de ser visto como um morador estranho, Etelvino, à custa do perfil folclórico e o semblante de pai da noiva em casamento arranjado, orgulhoso da própria obra, por mais despropositada que fosse, conseguira granjear amigos com uma facilidade da qual ele próprio desconfiava eventualmente, mas que o fazia sentir-se como o mais normal dos habitantes. Não o era, mas como a louco não se contraria, davam-lhe o crédito possível, embora muitos alertassem para os perigos de se dizer qualquer coisa sem total precisão a alguém tão literal.

Numa certa manhã, indignara-se com o suposto aumento dos tomates, que no entanto tinham o mesmo preço havia vários anos, apesar da seca implacável, talvez porque a depauperada população de Errantes carecesse de recursos para arcar com qualquer elevação. O quitandeiro Rudolfo Alamedas, agastado com os dezoito minutos de duração da refrega, aconselhou-o a se queixar ao bispo. Etelvino viu sentido na sugestão, posto que via sentido em tudo, já que nada lhe fazia sentido. Acomodou sobre o animal esqueletizado pela estiagem, em surradíssimos alforjes cor de abacate, uns poucos pertences, entre os quais um escapulário dos tempos de primeira comunhão, e se precipitou por trilhas inóspitas, cujos traçados eram evocados apenas em literatura de cordel, e ainda assim como cenário das tragédias nada épicas da miséria.

Mesmo Rudolfo Alamedas, homem conhecido por lhe faltar em paciência o que lhe sobrava em massa física, teria se poupado da culpa de condenar um pobre diabo a mormaços intermináveis caso acreditasse mesmo nas razões do adjetivo incorporado ao nome de Etelvino. Qualquer um que tivesse sido criado num raio de milhares de quilômetros acreditaria, mas Rudolfo era recém-chegado, pouco familiarizado com as lendas do lugar, e podia se dispensar de levá-las a sério. Naquela manhã diáfana, recomendara, para se livrar do chato, apenas por isso, que se queixasse ao bispo do preço dos tomates. A expressão popular era por demais conhecida para ser levada ao pé-da-letra mesmo por um lunático, pensara.

E foi assim que Etelvino, o Literal, viu-se na antessala do arcebispo Manfredo Perez de Lima e Silva, numa tarde de quarta-feira outonal, se bem que as estações do ano não passam de miragem naquela região onde o calor não amaina em tempo algum e poucas são as folhas disponíveis para cair em qualquer tempo. O arcebispo, homem ocupado e famoso pelo temperamento irascível, característica pouco cristã, mas muito útil para manter à distância os indesejáveis, só foi recebê-lo ao cabo de outros três dias, quando o persistente interlocutor emitia preocupantes sinais de fadiga e anemia, apesar das rosquinhas de polvilho com chá de maçã religiosamente servidos pelo noviço Adamastor.

A espera revelar-se-ia inútil. Arcebispo Manfredo, fustigado pelo calor da batina de pano duplo e pelos calores da idade, ouviu-o com uma paciência tirada de onde nem ele sabia, paciência destinada apenas a peregrinos de terras distantes e a insanos de quaisquer terras, mas nem com inspiração divina seria capaz de lhe dar uma resposta satisfatória. Etelvino enfrentou a jornada de volta com o mesmo estoicismo e nenhuma desesperança, disposto a procurar Rudolfo Alamedas e lhe relatar que a queixa ao arcebispo de nada adiantara, e que portanto era necessário rediscutir o preço dos tomates.

Não era a primeira vez que episódio semelhante ocorria. A primeira fora aos 14 anos quando, acometido pela inevitável paixão de adolescente, declarara-se a Fátima Gatoeiro, a linda filha de um comerciante português, uma morena de olhos profundos como as águas do Tejo, que sem saber como se livrar de tão aloprado galanteador lhe perguntara se ele não tinha espelho em casa. Etelvino, desprovido das bênçãos da natureza, e ainda por cima infestado pelas acnes da juventude, entendeu a frase como uma promessa de favores da inatingível donzela, e permaneceu por dias e noites em frente ao espelho incrustado na cristaleira que acompanhava a família havia três gerações, de um tempo em que cupim algum era capaz de destruir a madeira entalhada pela história, na esperança de que este gesto colaborativo o deixasse em alta conta com o objeto de seus sonhos. Apresentou-se a Fátima Gatoeiro mais apaixonado do que nunca, só para atrair a ira de seu pai, que por pouco não revogou a proverbial complacência de Errantes para com seu filho descerebrado e não lhe enfiou barriga adentro o facão de pura prata além-mar.

O mesmo ocorreu quando um vizinho de quarteirão proferiu a famosa frase “vá ver se estou na esquina”, o que o deixou durante horas plantado entre as acácias adornadoras da confluência entre as ruas General Almeida de Mesquita e Florentino Alvarenga, como se à espera de uma nau fantasma que jamais cumpriria tal trajeto.

A ensandecida peregrinação ao arcebispado talvez se tivesse convertido em ensinamento permanente, não fosse tão curta e desprovida de conseqüência a memória popular. Com as forças revigoradas pela conversa com o arcebispo Manfredo, Etelvino, o Literal, comprou muitas brigas nos tempos seguintes. Numa contenda de especial fragor, levou o adversário a tal grau de irritação, que a este nada restou senão tentar encerrar o diálogo com uma vociferação célebre. “Vá para o raio que o parta”, grasnou o truculento Chico Malffati, depois de horas de bate-boca.

O dia amanheceu com semblante assustador. As nuvens negras não condiziam com as folhas do calendário. A primavera se avizinhava, o clima deveria se revelar menos implacável, mas estava tão escuro quanto nas mais escuras noites. Os trovões eram ouvidos a muitas léguas, e os raios entrecortavam o céu como flechas atravessadas nos corações dos amantes. Etelvino, o Literal, indiferente à fúria dos elementos, vestiu a roupa domingueira, pois para tipos como ele qualquer dia é domingo, e domingo é qualquer dia, e acelerou o passo para tomar café na pousada de Maria Narrimar, que ficava do outro lado da praça, onde iria saborear o queijo forte com melado que era seu prato predileto. Deu poucos passos, e mais passos não pôde dar, porque ao se colocar bem no meio do enorme – para os padrões locais – losango que formava a praça, foi colhido por um raio, e nunca mais foi visto, nem por ali nem em lugar algum. No dia seguinte, os enfastiados moradores de Pontal dos Errantes limitaram-se a comentar: “Quem diria que ele era capaz!”. Desta vez, Etelvino, o Literal, levara-se a sério demais.


Publicado originalmente no site coletiva.net

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