Norman Mailer, o best-seller provocador
Primeiro, leiam o início de Os Nus e os Mortos:
“Ninguém podia dormir. Quando amanhecesse, as embarcações de assalto
seriam
lançadas ao mar, e uma primeira vaga de soldados transporia a
rebentação e atacaria a praia de Anopopei. No navio, no comboio
inteiro, predominava a certeza de que dentro de
poucas horas alguns deles estariam mortos.
“Um soldado estendido ao comprido no beliche, os olhos fechados, continua
inteiramente desperto. Em torno de si, como o sussurro da rebentação, escuta os
murmúrios dos homens em seus cochilos intermitentes. – Não farei, não farei –
grita alguém no meio de um sonho. O soldado abre os olhos. Esquadrinha
lentamente o porão e seu olhar se perde no emaranhado das marcas, dos corpos
nus e do equipamento bamboleante. Conclui que precisa ir à latrina. Praguejando,
contorce-se todo até conseguir sentar-se, as pernas penduradas para fora
do beliche, e apóia as costas arqueadas no cano de ferro da maça de cima.
Suspira, apanha os sapatos que amarrou a um pilar e calça-os vagarosamente. Seu
beliche é o quarto numa fila de cinco. Desce inseguro na semi-obscuridade,
receando pisar algum dos companheiros que ocupam as maças de baixo. No soalho,
envereda por um labirinto de sacos e mochilas, tropeça uma vez num fuzil e
avança para a porta do tabique. Atravessa outro alojamento, cujo corredor
também está atravancado, e afinal chega à latrina.
“Lá dentro o ar está impregnado de vapor. Mesmo agora alguém está utilizando o único chuveiro de água doce, o qual vem sendo disputado desde o embarque das tropas. O soldado passa pelos jogos de dados nos chuveiros de água salgada, que ninguém usa, e acocora-se nas tábuas úmidas e rachadas da latrina. Não trouxe cigarros e fila de um sujeito sentado ali perto. Enquanto fuma, observa o piso negro molhado, coberto de guimbas, e ouve a água correr na caixa da privada.”
Com apenas 25 anos de idade, Norman
Mailer publicou, em 1948, Os Nus e os
Mortos (The Naked and the Dead),
um portentoso relato jornalístico tecido a partir de suas experiências na
Segunda Guerra Mundial. A obra tornou-se estrondoso sucesso de público e
crítica, deu início a uma trajetória de sucesso e começou a inscrevê-lo na
galeria dos grandes do new journalism,
ao lado de nomes como Truman Capote, Gay Talese, John Hersey e Tom Wolfe.

Forjada a partir de uma obra
inaugural extraordinária, equiparada a grandes títulos na literatura de seu
país, a carreira de Mailer como escritor tinha tudo para deslanchar sem passar
por aqueles estágios intermediários de incertezas e fracassos aos quais mesmo
os grandes estão sujeitos. Entretanto, o reconhecimento de seu talento precoce
não lhe garantiu a escalada direto ao topo. Ainda que a fama lhe tenha aberto
muitas portas, inclusive a de roteirista em Hollywood, nos tempos seguintes
acumulou rejeições das editoras e, mesmo o que conseguia publicar, acabava
naufragando.
A lenda em torno de seu nome, no
entanto, continuaria a ser talhada, não apenas no cinema. Embora Hollywood
jamais pudesse ser desprezada – ontem e sempre –, trava-se de uma indústria de
peso no entretenimento global e, de certa forma, e em boa parte de seu escopo,
de viés quase oficialista, quase chapa-branca no cenário da cultura americana,
sobretudo sob o jugo do Macarthismo, naqueles paranóicos anos do auge da Guerra
Fria. De temperamento inquieto e dotado de severa mordacidade, Mailer tornou-se
um polemista respeitado, e temido, por meio de artigos na publicação alternativa
The Village Voice, que ajudou a
fundar, e nos quais tecia críticas tão corrosivas quanto verdadeiras ao establishment da América. (Leia a continuação clicando no link abaixo).
Mailer foi um escritor prolixo, tendo
produzido 39 livros, dos quais 11 romances. Apesar da vida profícua e
glamurosa, rejeitava a ideia de escrever uma autobiografia. A respeito disso,
proferiu uma frase lapidar: “A cada vez que você passa por uma experiência
muito intensa, forma-se um cristal em sua personalidade, que projeta reflexos
para escrever muitas histórias. Em uma autobiografía, você provavelmente
destrói todos os seus cristais”.
Mailer converteu-se figura
iconográfica no panteão no new journalism
e da literatura contemporânea porque, ao estilo rascante, original e
saboroso, somava a capacidade de transitar com invulgar desenvoltura pelos mais
variados assuntos, muitos deles caros ao coração dos americanos, e de todo
mundo. Na coletânea de artigos O
Super-Homem vai ao Supermercado retratou, com sua proverbial ironia, os
bastidores das convenções dos democratas e dos republicanos de 1960 a 1968.
Em Os
Exércitos da Noite abordou a grande marcha pacifista de Washington contra a
Guerra do Vietnã, em 1967, obra que lhe valeu o National Book Award e o
Pulitzer, principal honraria jornalística. Outro Pulitzer viria em 1980 com A Canção do Carrasco, inspirado na
história de Gary Gilmore, assassino que se tornou célebre ao exigir o
cumprimento de sua sentença de morte por dois assassinatos cometidos no estado
de Utah.
Democratas x republicanos, Guerra do
Vietnã, criminoso sentenciado à morte, temas recorrentes no imaginário
americano permearam a obra de Mailer. Um de seus maiores êxitos é A Luta, magistral narrativa do confronto
realizado no Zaire, em 1974, entre Muhammad Ali, negro, convertido ao islamismo
e que se recusara a lutar no Vietnã – o próprio Mailer fora preso em 1969 por
participar de manifestações contra a guerra –, e o campeão George Foreman, que,
apesar de também ser negro, acabou por encarnar o status quo branco dos EUA naquele cenário de embate ideológico que
marcou os anos 1970. Uma soberba obra sobre esporte, sobre convicções
políticas, mas, especialmente, sobre a humanidade dos contendores para os quais
a maior luta seria sempre consigo mesmos. O livro deu origem ao documentário Quando Éramos Reis, ganhador do Oscar.
Outro grande sucesso comercial de Mailer
foi a biografia de Marylin Monroe, lançada em 1973, na qual sugere que a morte
da atriz mais emblemática dos anos dourados de Hollywood e símbolo sexual do
cinema por excelência, teve o envolvimento da CIA e do FBI, devido ao seu
suposto romance com o senador Robert Kennedy. Marylin, que já havia tido um
caso com o presidente John Fitzgerald Kennedy, oficialmente suicidou-se com uma
overdose de barbitúricos em 1962, aos 36 anos. Mais uma provocação de Mailer.
Faria outras, como na biografia de Lee Harvey Oswald, oficialmente o assassino
solitário de JFK. Sempre provocador, sempre sucesso. No conjunto, um autor
inovador e fundamental.
(Publicado originalmente na revista Press)
Crédito da Foto: Random House
Crédito da Foto: Random House
Nenhum comentário:
Postar um comentário