Norman Mailer, o best-seller provocador
Primeiro, leiam o início de Os Nus e os Mortos:
“Ninguém podia dormir. Quando amanhecesse, as embarcações de assalto
seriam
lançadas ao mar, e uma primeira vaga de soldados transporia a
rebentação e atacaria a praia de Anopopei. No navio, no comboio
inteiro, predominava a certeza de que dentro de
poucas horas alguns deles estariam mortos.
“Um soldado estendido ao comprido no beliche, os olhos fechados, continua
inteiramente desperto. Em torno de si, como o sussurro da rebentação, escuta os
murmúrios dos homens em seus cochilos intermitentes. – Não farei, não farei –
grita alguém no meio de um sonho. O soldado abre os olhos. Esquadrinha
lentamente o porão e seu olhar se perde no emaranhado das marcas, dos corpos
nus e do equipamento bamboleante. Conclui que precisa ir à latrina. Praguejando,
contorce-se todo até conseguir sentar-se, as pernas penduradas para fora
do beliche, e apóia as costas arqueadas no cano de ferro da maça de cima.
Suspira, apanha os sapatos que amarrou a um pilar e calça-os vagarosamente. Seu
beliche é o quarto numa fila de cinco. Desce inseguro na semi-obscuridade,
receando pisar algum dos companheiros que ocupam as maças de baixo. No soalho,
envereda por um labirinto de sacos e mochilas, tropeça uma vez num fuzil e
avança para a porta do tabique. Atravessa outro alojamento, cujo corredor
também está atravancado, e afinal chega à latrina.
“Lá dentro o ar está impregnado de vapor. Mesmo agora alguém está utilizando o único chuveiro de água doce, o qual vem sendo disputado desde o embarque das tropas. O soldado passa pelos jogos de dados nos chuveiros de água salgada, que ninguém usa, e acocora-se nas tábuas úmidas e rachadas da latrina. Não trouxe cigarros e fila de um sujeito sentado ali perto. Enquanto fuma, observa o piso negro molhado, coberto de guimbas, e ouve a água correr na caixa da privada.”
Com apenas 25 anos de idade, Norman
Mailer publicou, em 1948, Os Nus e os
Mortos (The Naked and the Dead),
um portentoso relato jornalístico tecido a partir de suas experiências na
Segunda Guerra Mundial. A obra tornou-se estrondoso sucesso de público e
crítica, deu início a uma trajetória de sucesso e começou a inscrevê-lo na
galeria dos grandes do new journalism,
ao lado de nomes como Truman Capote, Gay Talese, John Hersey e Tom Wolfe.
Norman Kingsley Mailer nasceu em Long
Branch, Nova Jersey, em 31 de Janeiro de 1923, e morreu em Nova York em 10 de
novembro de 2007, aos 84 anos. Filho de imigrantes judeus de classe média, aos
16 anos ingressou na faculdade de engenharia aeronáutica em Harvard, curso ao
qual daria seguimento na Sorbonne, em Paris. A despeito de cursar um ofício
técnico em duas das maiores universidades do mundo, antes de se graduar
combateu na Segunda Guerra em fronts nas Filipinas e no Japão. A acurada
percepção do que ocorria à sua volta, a sensibilidade para perceber seus tons e
meio-tons e o talento inato para a arte de contar histórias o levaram a
escrever Os Nus e os Mortos, cuja
aclamação, aliada à confessada paixão, fez o mundo perder um engenheiro, quem
sabe brilhante, e ganhar um nome de primeiríssima linha não apenas no
jornalismo e na literatura, mas na cultura pop americana de modo mais
abrangente.
Forjada a partir de uma obra
inaugural extraordinária, equiparada a grandes títulos na literatura de seu
país, a carreira de Mailer como escritor tinha tudo para deslanchar sem passar
por aqueles estágios intermediários de incertezas e fracassos aos quais mesmo
os grandes estão sujeitos. Entretanto, o reconhecimento de seu talento precoce
não lhe garantiu a escalada direto ao topo. Ainda que a fama lhe tenha aberto
muitas portas, inclusive a de roteirista em Hollywood, nos tempos seguintes
acumulou rejeições das editoras e, mesmo o que conseguia publicar, acabava
naufragando.
A lenda em torno de seu nome, no
entanto, continuaria a ser talhada, não apenas no cinema. Embora Hollywood
jamais pudesse ser desprezada – ontem e sempre –, trava-se de uma indústria de
peso no entretenimento global e, de certa forma, e em boa parte de seu escopo,
de viés quase oficialista, quase chapa-branca no cenário da cultura americana,
sobretudo sob o jugo do Macarthismo, naqueles paranóicos anos do auge da Guerra
Fria. De temperamento inquieto e dotado de severa mordacidade, Mailer tornou-se
um polemista respeitado, e temido, por meio de artigos na publicação alternativa
The Village Voice, que ajudou a
fundar, e nos quais tecia críticas tão corrosivas quanto verdadeiras ao establishment da América. (Leia a continuação clicando no link abaixo).
Mailer foi um escritor prolixo, tendo
produzido 39 livros, dos quais 11 romances. Apesar da vida profícua e
glamurosa, rejeitava a ideia de escrever uma autobiografia. A respeito disso,
proferiu uma frase lapidar: “A cada vez que você passa por uma experiência
muito intensa, forma-se um cristal em sua personalidade, que projeta reflexos
para escrever muitas histórias. Em uma autobiografía, você provavelmente
destrói todos os seus cristais”.
Mailer converteu-se figura
iconográfica no panteão no new journalism
e da literatura contemporânea porque, ao estilo rascante, original e
saboroso, somava a capacidade de transitar com invulgar desenvoltura pelos mais
variados assuntos, muitos deles caros ao coração dos americanos, e de todo
mundo. Na coletânea de artigos O
Super-Homem vai ao Supermercado retratou, com sua proverbial ironia, os
bastidores das convenções dos democratas e dos republicanos de 1960 a 1968.
Em Os
Exércitos da Noite abordou a grande marcha pacifista de Washington contra a
Guerra do Vietnã, em 1967, obra que lhe valeu o National Book Award e o
Pulitzer, principal honraria jornalística. Outro Pulitzer viria em 1980 com A Canção do Carrasco, inspirado na
história de Gary Gilmore, assassino que se tornou célebre ao exigir o
cumprimento de sua sentença de morte por dois assassinatos cometidos no estado
de Utah.
Democratas x republicanos, Guerra do
Vietnã, criminoso sentenciado à morte, temas recorrentes no imaginário
americano permearam a obra de Mailer. Um de seus maiores êxitos é A Luta, magistral narrativa do confronto
realizado no Zaire, em 1974, entre Muhammad Ali, negro, convertido ao islamismo
e que se recusara a lutar no Vietnã – o próprio Mailer fora preso em 1969 por
participar de manifestações contra a guerra –, e o campeão George Foreman, que,
apesar de também ser negro, acabou por encarnar o status quo branco dos EUA naquele cenário de embate ideológico que
marcou os anos 1970. Uma soberba obra sobre esporte, sobre convicções
políticas, mas, especialmente, sobre a humanidade dos contendores para os quais
a maior luta seria sempre consigo mesmos. O livro deu origem ao documentário Quando Éramos Reis, ganhador do Oscar.
Outro grande sucesso comercial de Mailer
foi a biografia de Marylin Monroe, lançada em 1973, na qual sugere que a morte
da atriz mais emblemática dos anos dourados de Hollywood e símbolo sexual do
cinema por excelência, teve o envolvimento da CIA e do FBI, devido ao seu
suposto romance com o senador Robert Kennedy. Marylin, que já havia tido um
caso com o presidente John Fitzgerald Kennedy, oficialmente suicidou-se com uma
overdose de barbitúricos em 1962, aos 36 anos. Mais uma provocação de Mailer.
Faria outras, como na biografia de Lee Harvey Oswald, oficialmente o assassino
solitário de JFK. Sempre provocador, sempre sucesso. No conjunto, um autor
inovador e fundamental.
(Publicado originalmente na revista Press)
Crédito da Foto: Random House
Crédito da Foto: Random House
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