quarta-feira, 20 de outubro de 2010

GENTE


Zélia Garcia



          Éramos todos muito jovens quando a conheci, nos anos 80, na redação do jornal Zero Hora. Os traços delicados, a pele morena, os cabelos radicalmente negros, a voz suave e algo rouca cujo tom eu jamais a veria elevar, formavam um conjunto que tornava Zélia Garcia uma mulher de todo modo interessante, mas havia mais: a delicadeza dos gestos, a educação refinada, os modos elegantes, a discrição sobre a vida pessoal, o charme natural reforçado por um guarda-roupa de bom gosto, com ênfase em cores escuras, em especial o preto, concediam a ela uma aura especial.
           Aos poucos nos aproximamos, mas foi quando troquei o Esporte pelo Segundo Caderno, no final daquela década, que o caminho de Zélia Garcia e o meu se cruzaram em definitivo. Eu era editor assistente e ela repórter especializada em moda, beleza, estilo e comportamento, assuntos sobre os quais viria a escrever para as maiores revistas nacionais do segmento, como Vogue, Marie Claire e Elle. Na primeira vez em que peguei um texto dela para editar, uma matéria sobre beleza para a contracapa da Revista ZH, chamei-a e perguntei se gostaria de me ajudar. Zélia, de acordo com os usos e costumes das redações de então, entregara o material e dera o assunto por encerrado, uma vez que os repórteres não costumavam ser convidados a participar da edição.


            O convite foi aceito com entusiasmo, Zélia sentou-se ao meu lado e “fechamos” a página juntos, com todas as decisões partilhadas e a certeza de que o material seria publicado do modo como ela imaginara, sem as costumeiras surpresas de dia seguinte. Começava a nascer ali um sentimento mútuo de respeito, carinho e admiração que perduraria por toda a vida. Um sentimento verdadeiro e longevo como só as amizades desprovidas de outras intenções ou interesses conseguem ser.
           
            Saí do Segundo Caderno e assumi um cargo executivo na redação, cujas funções me faziam trabalhar até bem tarde, sendo sempre um dos últimos a ir embora. Era frequente a presença solitária de Zélia no espaço destinado a sua editoria, preparando reportagens especiais para o final de semana. Meticulosa, perfeccionista, além de dotada de um ótimo texto ela tinha uma visão privilegiada de como uma reportagem deveria ser apresentada ao leitor, qual a melhor forma de ilustrar, qual o melhor acabamento. Muitas vezes eu saía e ela ainda ficava lá, praticamente fechando a redação.

            Um episódio é emblemático dessa dedicação: o telefone celular era uma novidade e a RBS comprara dois dos primeiros aparelhos disponíveis em Porto Alegre. Um deles, a serviço da redação durante o dia, à noite ficava comigo para que eu fosse chamado em caso de emergência. Eu era um editor em permanente plantão. Certa vez, já de madrugada, caiu um ministro da Fazenda – se não me falha a memória foi o Marcílio Marques Moreira – e a Zélia era a única jornalista ainda presente no prédio do jornal. Ela me ligou, deu-me a notícia e disse que já havia mandado um carro me apanhar. Voltei, parei a rodagem, alteramos a capa e uma página interna e o jornal foi às bancas com a notícia.
             
            Alguns anos depois ela saiu da ZH, depois eu também, sendo que, no meu caso, houve muitas andanças. De lá para cá morei em Brasília (quando eu ainda estava no jornal), em São Paulo, em Florianópolis, idas e vindas que nos afastavam fisicamente, mas, mesmo nessas circunstâncias, sempre dávamos um jeito de nos falar por telefone ou pela internet.  E as conversas se estendiam. Ao receber ou fazer uma ligação para ela eu já tratava de avisar que não me esperassem para o jantar, por exemplo, porque estava com a Zélia ao telefone. Tínhamos muito em comum e adorávamos trocar idéias um com o outro. É sempre bom falar com quem, de fato, tem algo a dar em troca.
           
            Voltamos a trabalhar juntos, ainda que remotamente, em 2002/2003, quando eu assumi a direção de redação da revista Forbes, em São Paulo, e lhe encomendei algumas reportagens, entre as quais um perfil de Jorge Gerdau Johannpeter. No começo da apuração, diante de dificuldades em obter certas informações, e do fato de que ele não podia lhe conceder uma entrevista naquele momento, e como eu queria publicar logo a matéria, conversamos sobre a montagem do texto, falamos de Gay Talese e seu célebre perfil de Frank Sinatra, peça antológica do new journalism, feito a partir de observações e depoimentos de terceiros, uma vez que Sinatra se recusara a lhe dar entrevista, embora lhe tenha franqueado acesso ao seu dia-a-dia.
                       
            A reportagem de capa, sob o título “O homem do aço” e o título interno “Os saltos bilionários do cavaleiro Jorge” (em alusão ao notório gosto do empresário pelo hipismo e por cavalos de modo geral) converteu-se em tremendo sucesso. Tão logo a revista foi distribuída em Porto Alegre, eu estava na redação, em São Paulo, quando ouvi Augusto Nunes, o diretor geral da operação Forbes, falando ao telefone – como sempre num italianíssimo tom de voz: “Valeu, Dr. Jorge, que bom”. “Obrigado, vou transmitir com certeza” e coisas do gênero. Ao desligar, Augusto me disse: “Dê os parabéns à Zélia. O Dr. Jorge falou que foi a melhor reportagem que já fizeram a respeito dele.” Logo depois ligaram da Gerdau para o departamento comercial querendo comprar as eventuais sobras daquela edição para distribuir a amigos e clientes. Mais um golaço da Zélia.
                       
            Em reportagem sobre relógios, clássicos, de luxo, históricos, todos sonhos de consumo masculino, Zélia incluiu o Time Dimension, peça sem ponteiros, que utiliza círculos concêntricos, jogo de luzes e sombras para marcar a passagem do tempo, desenhado por Hans Donner, famoso pela criação da vinheta da Rede Globo, mas com bem sucedidas incursões em vários ramos do design e até da arquitetura. O Time Dimension viria a chamar a atenção de Bill Gates e se consagrar em sua versão virtual como protetor de tela do Windows.
            Assim que a revista foi às bancas do Rio, Zélia estava em seu apartamento, em Porto Alegre – há cerca de três anos, por ocasião da morte do pai, mudara-se para Esteio a fim de ficar próxima da mãe – quando recebeu uma ligação: “Aqui é o Hans Donner”, falou a voz do outro lado da linha. Ela pensou que se tratava de brincadeira de algum amigo, quem sabe até minha, mas era ele mesmo, dizendo-se muito feliz por ter sido colocado ao lado de ícones da relojoaria. O designer manifestou vontade de escrever um agradecimento para publicarmos na seção de cartas. Quando fechávamos a edição seguinte, e o prazo se encerrava, ele, direto da maternidade, onde acabara de nascer João Henrique, seu primeiro filho com Valéria Valenssa, a notória Globeleza, encontrou tempo para redigir um bilhete carinhoso que fez chegar às nossas mãos em tempo de ser publicado.

            São apenas dois exemplos, pois várias foram as reportagens de sucesso que a Zélia emplacou na Forbes, incluindo uma sobre o mercado da beleza masculina com Marcello Antony na capa, que, por razões óbvias, estendeu o público da revista ao universo feminino. Eu já sabia que a parceria daria bons frutos mais uma vez, pois eu não a convidara apenas por amizade, e sim pela competência, pelo talento e pelo profissionalismo dela, capazes de engrandecer a revista e o meu próprio trabalho. Quem faz isso, de convidar só pela amizade, compromete o produto e o futuro profissional. Conforme me ensinaram um dia, não tem qualquer problema em contratar um amigo se o amigo é competente, o segredo é não se encantar com medíocres.

            Com Zélia a admiração nascera do conjunto: profissional séria, criativa e eficiente, pessoa de caráter inquestionável, chique, mas nunca esnobe, ética, bondosa, generosa, solidária e leal. Jamais brigamos, não tivemos sequer daquelas discussões bobas que os amigos às vezes têm. Talvez porque tanto ela quanto eu sempre selecionamos muito bem os amigos. Melhor que sejam menos, mas melhores e, sendo menos, possam dar e receber maior atenção. Fizemos muitos projetos e planos, alguns realizamos, outros não deu tempo.
           
            Na tarde da quarta-feira 13 de outubro de 2010, com a mesma discrição com que viveu, Zélia, uma das melhores pessoas que conheci, deixou este mundo.


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