terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

LITERATURA

Suicídios exemplares


         Se o pensamento é o único território realmente livre de que dispomos, uma vez que os sonhos abarcam doses de desejos, temores e outras sensações obscuras despejadas pelo inconsciente – embora bem possa ser o contrário –, o suicídio é a última fronteira da capacidade humana de se rebelar contra as circunstâncias de vida, considere isso destino ou mera sequência aleatória de acontecimentos. A criatura, num ato de extrema rebeldia, desafia o poder de vida e morte do criador, ou simplesmente abre mão da própria vida na tentativa vã de provar algo a si mesmo ou, invariavelmente, a alguém, mesmo sabendo que, ainda que a mensagem chegue ao destinatário, o sacrifício já não lhe servirá de nada.
         Muitas vezes, a abordagem é menos romântica, transformando o ato em simples e rápida forma de se livrar de dificuldades cotidianas, sejam elas dívidas, excesso de responsabilidades ou prosaicos problemas de baixa auto-estima. Na interpretação de Albert Camus – a despeito de eventuais rancores ideológicos, figura de proa na literatura e na filosofia do século 20 –, o suicídio é a questão filosófica primordial. Trata-se de decidir se a vida vale ou não a pena ser vivida, sendo o resto consequência de tal reflexão. Segundo Sêneca, nas Epístolas Morais a Lucílio, “nada melhor a lei interna fez do que nos dar uma entrada para a vida e muitas saídas”.


         O tema é amplo, propicia frondosos ensaios e já foi abordado à exaustão de pontos de vista filosóficos, morais, religiosos e até pragmáticos. Revigorar a pauta é o principal mérito de Suicídios Exemplares, saborosa coletânea de contos do espanhol Enrique Vila-Matas, para quem “escrever é corrigir a vida, é a única coisa que nos protege das feridas e dos golpes da vida.” Permeadas de ponderações filosóficas, as narrativas deste pequeno inventário acerca do ato extremo abrigam também exemplar inventividade e rascante ironia, sendo a maior delas o ponto que têm em comum: nenhum de seus personagens se suicida de fato, como amantes que se devotam ao objeto de seus desejos sem jamais chegar a possuí-lo. Vejamos um trecho:
         “Eu quis mesmo me matar me atirando do primeiro andar. Cômico, mas o que eu posso fazer? Desci do sexto para o primeiro andar, porque não tive coragem de voar tão alto. Temia o baque brutal contra o asfalto, pra que me enganar? No fim, fraturei o tornozelo e a tíbia e não sei mais o quê, mas sobrevivi. Quando me recuperei do vôo ensandecido e voltei para casa o desespero com a barulheira dos vizinhos aumentou. Pensei, refleti: se as coisas continuarem assim, logo vou me atirar do segundo andar, e então, após a inevitável visita ao hospital e a posterior volta para casa, vou me atirar do terceiro, depois do quarto... Enfim, se não fizer alguma coisa, se não inventar alguma coisa logo, vou acabar mal, muito mal mesmo.”

         Entre a filosofia, a ironia e um certo humor negro bem dosado, Vila-Matas cativa o leitor. Para além do senso universal de que o suicida não quer mesmo morrer, mas apenas chamar a atenção, Vila-Matas despe o ato extremo do simbólico e do sagrado, vulgariza-o, tornando a morte (provocada ou não) tão banal quanto a própria vida.

SUICÍDIOS EXEMPLARES
Enrique Vila-Matas
Cosac Naify
208 páginas
16 x 23 cm
R$ 49,00

Um comentário:

Isabel disse...

Como sempre, um excelente texto! O livro me pareceu muito interessante, não só pela temática mas, principalmente, pela forma como ela é abordada. Relatos de quase suicidas e o olhar para os motivos que podem gerar o desejo suicida. Tudo com ironia e mergulhos filosóficos. Valeu pela super dica!