segunda-feira, 4 de agosto de 2008

TOCO Y ME VOY

O DUPLO TRIUNFO DA IMPUNIDADE

Augusto Nunes

"Ele estava feliz como pinto no lixo", teria o cantor Jamelão repetido a perfeita síntese da passagem de Bill Clinton pela Mangueira se pudesse ver o homem empoleirado no palanque em Goiânia. Ao lado do prefeito Iris Rezende, em marcha acelerada para a conquista do segundo mandato, lá estava Delúbio Soares – ele mesmo, o ladrão que rebatizou de "recursos não-contabilizados" o produto do roubo, o chefe da quadrilha do mensalão, o ex-tesoureiro nacional que reduziu a farrapos a bandeira da ética na política desfraldada pelo PT no dia do nascimento. Delúbio estava de volta. E tão risonho quanto Clinton na visita à Mangueira.

Ambos festejaram a sensação de liberdade. No Rio, o presidente americano estava distante da trabalheira na Casa Branca, longe de Hillary e no meio de um batalhão de mulatas. No comício de quinta-feira, o gatuno goiano estava longe da polícia, distante dos tribunais, no alto do palanque do favorito e no meio de possíveis patrocinadores, patrocinados e parceiros. É disso que Delúbio gosta. É isso o que Delúbio quer. Como nos bons tempos, recebera um convite da estrela do elenco. Iris avisou que ficaria honrado com a presença do aliado que costurou a aliança entre o PMDB do prefeito e a seção goiana do PT – o mesmo partido que expulsou Delúbio em 2005.

Como as vacinas e as leis, no Brasil também punições partidárias às vezes não pegam. "Essa coisa de mensalão vai acabar virando piada de salão", avisou Delúbio um ano depois de desbaratado o esquema que produziu o mais medonho episódio da história político-policial brasileira. Não pensava em vacinas no momento da profecia. Pensava na expulsão de araque, forjada para que fossem esquecidos dezenas de comparsas. Pensava na Justiça, que jamais castiga quem pode comprar roupas de grife e alugar advogados espertos. E pensava na memória curta do país. Estava certo, constatou no comício em Goiânia.

Dois anos depois de divulgado o relatório em que o procurador-geral da República radiografou a "organização criminosa sofisticada", um ano depois de formalizado pelo STF o início do processo contra os mensaleiros, Delúbio exibia, entre um sorriso e outro, a inconfundível placidez dos condenados à impunidade. Durante o curto degredo na fazenda da família, é provável que tenha despertado no meio da madrugada com medo do carcereiro ou dando cabeçadas numa grade. Para exorcizar pesadelos, certamente amparou-se no caso exemplar de Paulo Maluf.

Na mesma noite de quinta-feira, enquanto Delúbio comemorava em Goiânia quase 10 anos de trapaças impunes (ele debutou em 1996, tungando entidades sindicais), Maluf reapareceu em São Paulo cavalgando o cartel admirável. Aos 76 anos, há 37 na vida pública, enfrentou quase 150 processos. Só dormiu na cadeia 40 noites. Durante o debate entre os candidatos à prefeitura paulistana, ninguém mencionou as sete ações judiciais que, em repouso no STF e em instâncias inferiores, envolvem Maluf em delinqüências que vão da improbidade administrativa à formação de quadrilha ou bando, de crimes contra o sistema financeiro e à paz pública à ocultação de bens ou valores.

Por que os parceiros de debate optaram pela amnésia? Talvez tenham preferido não perder tempo com um concorrente condenado a perder a eleição. Talvez se tenham curvado à evidência de que o ícone dos fora-da-lei da classe executiva jamais se sentará num banco dos réus. Ele trava duelos com tribunais há 40 anos. Ganhou todos. No mais recente, impôs à Justiça Eleitoral a oficialização do campeão brasileiro da ficha suja.

O sorriso no palanque em Goiânia faz sentido. Delúbio também acha que vai ser Paulo Maluf.


Publicado originalmente na Gazeta Mercantil

Um comentário:

Clovis Heberle disse...

Como é bom ler estes textos magistrais do Augusto.
Um abraço
Clovis