sexta-feira, 8 de agosto de 2008

PARA BAIXO

Luciana Pinsky

Você me desafiou para uma descida. Ninguém me desafia para uma descida. Não há pessoa louca suficiente para acompanhar-me em uma descida. Você passa, magnética. Eu vou. Não freio. Pego mais e mais impulso. As rodas fervem. Vivo velocidade. Não quero morrer ainda, tenho tantos países a percorrer, tanto caminho para descobrir, tanta cerveja para beber, tanta vida me espera, mas se for para morrer que seja assim, descendo a tantos mil por hora. Se for para morrer, que seja como macho. E você me instiga. “Vamos, vamos”.

Você e esses olhos azuis angelicais que de anjo nada tem. Fui. E você grita. Cada vez mais alto. AAAAAAAAA. Eu grito junto, sua voz colando na minha, como se houvéssemos ensaiado. AAAAAAAAA.

Dois patinadores, descendo uma ladeira de forma alucinada, barulhentos como hooligans prestes a se enfrentar. Era assustador.

O desejo mais primitivo expresso sobre aquelas tantas rodas por um casal em bodas. Era a comunhão completa.

Só que não éramos um casal, não tínhamos relação alguma e aquilo resumia-se a uma descida muito rápida de patins pelo asfalto de Perdizes. Mas isso só depois. Na hora era a união. Descendo com você aquela ladeira, eu era tão eu como era possível ser.

Lá embaixo ela me esperava. Minha companheira real, aquela que sabe o nome da minha irmã, o dia em que nasci, compartilha meu dia-a-dia, ainda que tema patins – “é perigoso”, diz sempre. Claro que é. Se não fosse, eu continuaria em casa navegando na internet.

– Que alívio vê-lo bem. Ouvi tanta gritaria que fiquei assustada.

– Obrigado, estou inteiro.

Ela ensaiou um cafuné e eu queria desafio. Seu toque era amigável, lembrei-me da minha mãe me pondo para dormir há um milhão de anos, com um tranqüilo aroma de alfazema. Ela era alfazema. Eu sonhava alcatrão. Ela me olhava com doçura, eu buscava brilho. Ela ofereceu-me chá, eu queria chope. Ela, sabonete. Eu, suor conquistado.

Você agradeceu a disputa. “Quem ganhou”? Eu ainda não sabia. Limpou o suor do rosto com a camiseta. Tal gesto deixou seu umbigo à mostra por alguns poucos segundos. A barriga tão lisa, quase podia senti-la nos meus dedos molhados. A barriga, tão fina, tão frágil, ali. Quem diria, você frágil. Você foi. Ela me deu a mão seca de alfazema.


Publicado originalmente no Blog do Noblat


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