Você não gosta do “tipo” de humor
praticado pelo pessoal do Charlie Hebdo e acha que, de alguma forma, isso justifica
o atentado? Bem, então espero que você goste do “tipo” de pessoa que eu sou...
Toda
forma de relativização da barbárie tem de ser condenada. São tantos comentários
sobre o massacre na França que nos obrigamos a ser seletivos. Um dos critérios
que utilizo é o de parar de ler imediatamente quando o autor tasca um “mas” já
na segunda frase. Que faça suas considerações ao longo do texto é justo e
normal, mas não assim, direto na segunda frase, pois aí se chega à velha
questão: quem mandou usar saias curtas?
O
método de relativização mais utilizado neste caso é o de lembrar o passado
colonialista da França – e, secundariamente, sua aliança secular com os EUA, o “grande
satã” imperialista. O país estaria pagando por seu passado de exploração e
opressão. Nada mais justo, é o que parece quererem dizer estas pessoas. Como resumiu
Gandhi, “olho por olho e o mundo acabará cego”, a civilização simplesmente
deixará de existir, voltaremos ao estado primal.
Relativizar
é, como diz a palavra, tornar relativo, tirar o caráter absoluto de algo, como
se fosse possível considerar discutível um atentado terrorista, seja de quem
for, seja onde for, seja contra quem for. Terrorismo é a volta à barbárie, é a
negação da civilização, é repulsivo, é nojento. Quem acha que “não é bem assim”
não tem cura, não adianta tentar discutir.
Uma
segunda forma de relativização bastante usada é a que abre este texto, a que
questiona a qualidade e o foco, o “tipo” de humor da publicação. O mundo seria
mais simples – e mais civilizado – se as pessoas, em grande parte, entendessem
que não são o centro do universo, que suas opiniões não são melhores do que as
de ninguém, que suas crenças religiosas, seus hábitos alimentares, sua
orientação sexual, enfim, que seu modo de vida não é melhor, nem pior – a menos
que se trate, por exemplo, de um terrorista – do que o de ninguém, e por isso
todos precisam exercitar a tolerância.
Há alguns
anos tornei-me vegetariano, muitos sabem, outros não, pois não fico fazendo
pregação, apenas vivo como quero. Entretanto, volta e meia escuto algo do tipo “deixe
de bobagem, o homem sempre foi carnívoro desde a pré-história”. Nem perco tempo
explicando para a pré-histórica mente que a humanidade evoluiu um tantinho desde
então, e que, entre outras coisas, desenvolveu a agricultura, o que lhe propiciou
não ter mais de caçar mamutes para não morrer de fome. E, se a questão é manter
a tradição, agir como o homem primitivo, por que não ir morar em uma caverna?
Ou quem sabe bater com uma clava na cabeça de uma mulher e arrastá-la à força
para seu leito?
Citei
este exemplo para ilustrar alguns pontos: primeiro, a dificuldade que as
pessoas têm em respeitar as diferenças, por menores que sejam – afinal,
acompanho os amigos em todo o restante do bufê, nas bebidas e nas sobremesas,
só abro mão da carne; segundo, como a grande maioria considera a sua verdade
como sendo a única. Isso leva à intolerância, que leva ao radicalismo, que leva
à predisposição para a violência extrema, que leva à barbárie.
Estou
entre os milhões de pessoas em todo o mundo a adotar a frase “Je suis Charlie”
como imagem do perfil nas redes sociais. Parece-me tão clara a mensagem, mas
nem isso é. Já li postagens dizendo que, embora o terrorismo seja condenável, “não
sou Charlie”. Acho que este povo não entendeu. Nem todos que adotaram a frase
lêem, apreciam ou aprovam integralmente o material publicado pela Charlie Hebdo.
Muitos, entre os quais me incluo, consideram que em várias ocasiões sim, o
humor da revista é de mau gosto, e humor de mau gosto não tem graça, com o
perdão pelo trocadilho. Mas este não é o ponto. Quem adotou o slogan quis dizer
“apenas” – e sinto-me meio tolo ao escrever isso, pois me parece tão óbvio – que
atos de barbárie atingem a todos nos, cidadãos civilizados, defensores,
portanto, da vida, da paz, da tolerância, da liberdade, do amor, do convívio
entre diferentes, da total liberdade de expressão, sim, total, pois liberdade é
algo que não pode ser relativo, não pode ter “mas”. Somos todos vítimas da
barbárie, somos todos Charlie Hebdo.
Voltemos
ao ponto da relativização da brutalidade como resposta ao passado colonialista
francês. Estou enganado ou quem defende este argumento no fundo está querendo
dizer – e só não o diz claramente para manter sua pretensa aura de correção política
– que os povos que um dia foram dominados, espoliados ou vilipendiados de
alguma forma têm o direito de se vingar do modo como bem entenderem, mesmo que
seja na base de AK-47 x lapiseira? Ao menos é o que me parece. E afirmar isso não
significa atribuir o massacre a um povo, a uma etnia, a uma religião? Então,
como podem os mesmos que pensam assim apelarem, de modo tão pungente, para que
não se generalize, pois são fatos isolados perpetrados por indivíduos, e não
atos coletivos de um grupo étnico-religioso em especial?
Bom, ainda
que pequem pela incoerência das posições, ao menos na segunda parte eles têm
razão. De fato, o radicalismo, a violência, o terror são atos de pessoas ou
grupos isolados, nunca de todo um povo, ou de todos os seguidores de uma
religião, embora seja inegável que o extremismo tem sido levado a cabo por quem
se professa de determinada crença, mesmo que suas mentes criminosas distorçam
totalmente os preceitos originais desta fé, conforme atesta a imensa maioria dos
1,5 bilhão de muçulmanos que vivem em paz, distantes do ódio e da violência. O
que tem de haver, cada vez mais, é uma reação proporcional desta maioria contra
o que praticam atos assim supostamente em nome dela. Felizmente, tal movimento
começar a tomar corpo.
Inegável
é que terroristas são pessoas com sérios problemas mentais. Seres normais não
fazem o que eles fazem, falar isso é chover no molhado. Trata-se de psicopatas,
quanto a isso creio não haver discussão. Construir uma cultura de amor à vida é
o desafio que as sociedades perseguem há séculos. É decididamente incerto se um
dia o ser humano logrará êxito em tal empreitada. Por mais que a sociedade
evolua, por mais que os bons se levantem contra os maus, por mais que se pregue
a paz e a bondade, ainda assim uma questão primordial permanecerá: como
desalojar o mal que se esconde no coração de tantos homens? Como evitar o
surgimento de psicopatas?
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