A desconstrução de J. M. Coetzee
Vincent, um jovem biógrafo inglês, baseia-se em anotações inéditas de seu biografado e em depoimentos de pessoas que conviveram com ele antes da fama – especialmente mulheres – para montar um surpreendente retrato do escritor sul-africano J. M. Coetzee. Romancista de talento invulgar, dono de uma prosa simples e elegante, capaz de conceder ao cotidiano um caráter envolvente e engajado, Coetzee sempre foi reconhecido também pela força de suas convicções políticas, suas críticas ácidas a questões que perpassam a formação da África do Sul como nação, sua autocrítica em relação às próprias fragilidades e uma visão sistêmica e lúcida da sociedade moderna.
Em Verão, que acaba de sair no Brasil pela Cia. Das Letras, o jovem Vincent nos revela que Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel e morto em 2005, jamais soube conduzir sua própria vida com a mesma desenvoltura exibida nas páginas de seus incontáveis livros de sucesso. Os fragmentos e relatos reunidos pelo biógrafo acabam por moldar a imagem de um homem tímido, de poucas ambições e iniciativas, dotado de um conformismo ancestral, de uma absoluta inabilidade no trato com as mulheres e quase assexuado.
De modo geral as entrevistadas, às quais Coetzee atribuíra relevância em sua trajetória, lembram-se dele como alguém que simplesmente passou por suas vidas sem deixar maiores marcas, com um misto de condescendência e rejeição, por vezes um afeto contido, mas em outras um sentimento que beira a repulsa. Sequer seu fraco desempenho sexual escapa à lupa da história. Vincent, que nunca encontrou Coetzee em vida, resume-se à observação impotente – mas consentida – da desconstrução pessoal do autor.
Bem, acontece que John Maxwell Coetzee, aos 70 anos de idade, está vivo e é o autor deste interessante Verão, terceiro volume de uma espécie de autobiografia ficcional integrada ainda pelos títulos Infância e Juventude. A originalidade da narrativa começa quando Coetzee abre mão de escrever em primeira ou terceira pessoas para se transformar em personagem. O culto ao próprio ego contido nesta decisão se dilui em meio às críticas impiedosas que o escritor se auto-impinge.
Tanto nos depoimentos das personagens fictícias, quando nas anotações soltas e incompletas que permeiam a obra, Coetzee aproveita, como costuma fazer, para inserir suas opiniões céticas acerca da África do Sul e das questões que ainda precisam ser revistas no país pós-apartheid, bem como reflexões sobre a sociedade globalizada, o papel do homem em seu meio e o da cultura na formação desse homem.
Ao longo do livro, certas conclusões contradizem outras, num original jogo de espelhos no qual cada imagem refletida corresponde a uma série de interpretações, e em que cada personagem pode personificar o reflexo do outro, com todas as suas variáveis. Coetzee se vê mesmo como este homem insosso descrito em Verão ou se trata de apenas mais uma ironia? Seja qual for a resposta, o grande escritor sul-africano consegue mais uma vez surpreender e encantar o leitor, mostrando o mesmo fôlego criativo de outra obra recente, Diário de Um Ano Ruim, no qual trafegava com idêntica soltura pelas águas revoltas da narrativa multilinear. Coetzee não só está vivo, mas em forma.
* * *
Quando eu trabalhava na revista Época, além de cumprir funções de editor, vez por outra atuava como resenhista. Diante das miríades de lançamentos literários que aportavam sem parar na redação, a equipe da editoria de cultura selecionava alguns, descartava a maioria, terceirizava outros para avaliação e eventual resenha. Em outubro de 2000, o editor de cultura, Cadão Volpato – que além de competente jornalista e apresentador de TV fez história como integrante da cultuada banda Fellini, lançada nos anos 80 e que virou um clássico do pop brasileiro –, alcançou-me o livro Desonra, de J. M. Coetzee, com a seguinte observação: “Eu não conheço, mas ouvi comentários positivos. Dê uma olhada e, se achar que vale, pode fazer uma resenha”. No dia seguinte respondi com entusiasmo: Coetzee, – até então um desconhecido para nós – era ótimo, valia no mínimo uma página – o que não é pouco no disputado espaço literário das revistas. Fiquei contente quando, três anos depois, Coetzee ganhou o Prêmio Nobel. Para ler a resenha de Desonra, tal qual publicada na revista Época, basta clicar na ilustração.
Foto de divulgação
___________________________________________________________
___________________________________________________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário