terça-feira, 19 de agosto de 2008

TOCO Y ME VOY

O CLASSE MÉDIA QUE SOBE
PELO ELEVADOR DE SERVIÇO


Augusto Nunes


O paulistano João Rogério da Silva Alves, 36 anos, 15 dos quais casado com Maria Cavalcanti, é motorista de táxi há 13. Mora com a mulher e duas filhas (14 e 9 anos) no bairro de Cachoeira, um amontoado de construções tristonhas que parecem mais velhas do que são – e sempre à espera do acabamento, dos atavios e dos móveis que não virão. O serviço de água funciona razoavelmente, a rua é asfaltada, mas a rede de saneamento básico ainda não chegou lá. A exemplo dos vizinhos, os Alves se livram dos detritos e dejetos do dia no leito de um córrego que depois os despeja no Rio Tietê.

A casa, alugada por R$ 300 mensais, tem dois cômodos de 12 m². O reservado à cozinha acabou acumulando as funções de sala de visitas, sala de jantar e copa. O outro é o quarto, dividido ao meio por um lençol ali pendurado para sugerir a inexistente privacidade. Nesse espaço estão a cama do casal e a das filhas, separadas por centímetros, além da TV comprada em janeiro de 2006 por R$ 800, fatiados em 12 prestações. "De lá para cá não tive dinheiro para mais nada", diz Alves. Nem para o carro próprio, que o dispensaria da porcentagem cobrada pelo patrão.

Há 13 anos a serviço do dono de uma frota de táxis, acorda sempre às 5h, busca o veículo na garagem da empresa e estaciona antes das 6h no ponto localizado na esquina entre a Alameda Peixoto Gomide e a Rua Oscar Freire, no coração dos Jardins. Nas 16 horas seguintes, estará ou à espera de algum passageiro, ou circulando pelos labirintos da metrópole, ou testando a paciência em ruas congestionadas.

Dorme perto de meia-noite. Folga aos domingos se juntou o suficiente durante a semana. Não tira férias há mais de 10 anos. "Com o que ganho, não dá para ter luxos, mas não devo nada a ninguém", diz. "Vivo uma vida de pobre". Ganha por mês cerca de R$ 1.800, que se somam aos R$ 400 que a mulher consegue como diarista. A renda familiar ultrapassa amplamente a fronteira, redefinida em 6 de agosto pela Fundação Getúlio Vargas, que separa a pobreza da classe média. "Você chegou aos R$ 1.064", deveria prevenir alguma placa. Por falta de aviso, Alves só soube na quinta-feira que subira na vida sem mudar de vida. Continuava pobre, mas na classe média.

"Como é que posso ser da classe média se não tenho como fazer o que faz a classe média?", intriga-se. Pergunto-lhe o que acha que faz a turma da divisão a que foi promovido. A classe média vai ao cinema ou ao teatro uma vez por semana, exemplifica. "E sai para comer num restaurante melhorzinho". Alves não vai ao cinema há 15 anos e nunca foi ao teatro. "Vontade eu tenho, o que não tenho é dinheiro", desculpa-se. Mas de vez em quando vai com a família a uma churrascaria, ressalva. Foi pela última vez faz três anos.

Ele por acaso notou que a pobreza está diminuindo, e em alta velocidade, como garante a pesquisa? "Só se os pobres dos bairros que esses caras pesquisaram mudaram todos para o meu", acha graça. Aponta um punhado de deficientes físicos e mulheres em andrajos com crianças de colo e emenda: "É assim em qualquer esquina". No fim da corrida, ele avisa que resolveu conferir a promoção: "Se entrei na classe média, vou usar o elevador social", sorri. "Até hoje só pude usar o elevador de serviço".


O indigente e a ararinha azul


Os alquimistas do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas não fariam feio se disputassem com os curandeiros da Fundação Getúlio Vargas a final do campeonato brasileiro de levantamento de pobre. Só anda faltando à direção do time mais esperteza marqueteira. Foi um erro, por exemplo, divulgar o levantamento do IPEA, também circunscrito às seis maiores metrópoles do País, junto com estudo da FGV intitulado A nova classe média. Ao transplantar um pedaço da pobreza para o organismo debilitado da classe média, a FGV mandou um petardo no ângulo que acabou ofuscando os dribles e passes de trivela dos craques do IPEA.

Um dos lances mais vistosos resultou na expulsão de milhões de brasileiros do campo da pobreza, restrito a famílias com renda mensal abaixo de R$ 207. De 2003 a 2008, segundo o IPEA, o índice baixou de 35% para 21,1%. Eram 14.352.753 no primeiro dia da Era Lula. Cinco anos depois, 4 milhões saíram do atoleiro. Os efeitos da pesquisa foram ainda mais agudos entre os miseráveis, rebatizados como "indigentes": os que sobrevivem com menos de R$ 103,75 caíram de 13,7% para 6,6%. Indigente agora virou uma espécie em extinção. Em 2010, será mais fácil enxergar uma ararinha azul que um genuíno miserabilis brasilis.


Publicado originalmente na Gazeta Mercantil.
Crédito da foto: Divulgação SEMAR/PI

Nenhum comentário: