terça-feira, 16 de setembro de 2008

TOCO Y ME VOY


O STF decreta a falência do sistema judicial

Augusto Nunes

Em 1º de julho de 2004, armado de metralhadoras, fuzis, pistolas, revólveres e granadas, o bando de meliantes criteriosamente selecionados pelo Primeiro Comando da Capital e pelo Comando Vermelho preparava-se para tomar de assalto uma cadeia na Grande São Paulo, e libertar os 1.279 presidiários, quando a polícia cercou seu esconderijo. A captura dos 12 bandidos abortou a primeira ofensiva conjunta das duas maiores organizações criminosas do país – e impediu que os chefões aliados celebrassem a desmoralização do sistema penitenciário paulista.

Na quinta-feira passada, armado de um pedido de habeas corpus, o bando de advogados alugados pelo PCC e pelo CV conseguiu do STF o sinal verde para devolver às ruas nove integrantes da tropa de elite engaiolada em 2004. Como em mais de quatro anos não foi encerrada sequer a fase de instrução do processo, reservada à coleta de provas e depoimentos, o Supremo Tribunal Federal autorizou a libertação da turma. Graças à decretação da prisão preventiva dos quadrilheiros, até então presos provisoriamente, uma juíza de primeira instância evitou que as feras escapassem da jaula. Mas a decisão do Supremo bastara para que os líderes da bandidagem festejassem a falência do sistema penitenciário nacional e do sistema judicial brasileiro.

"Que beleza!", ironizou um delegado. "O STF talvez não saiba que são bandidos perigosíssimos". O pior é que sabe, informa o parecer do ministro Carlos Ayres Britto, relator do caso, que atribuiu à altíssima voltagem dos processados o inverossímil imobilismo do processo. "O motivo de tanto atraso não foi nenhuma ação protelatória dos defensores dos réus", ressalvou Britto. Dezenas de audiências, justificou em juridiquês castiço, "foram canceladas e remarcadas por falta de efetivo estatal para apresentação de presos ao juízo criminal, tendo em vista a alta periculosidade dos agentes".

Tradução para língua de gente: por falta de escoltas de bom tamanho, bandidos deixaram de ser deslocados da cela para o fórum. Como os réus são de meter medo em serial killer americano, os magistrados invariavelmente pediam à Secretaria de Segurança Pública que providenciasse a mobilização de 20 dos 100 mil soldados da PM para acompanhá-los até o tribunal. Como a chefia da PM nunca atendia às solicitações, as audiências eram canceladas. E assim se passaram 48 meses.

"Há 20 anos, quando fui secretário de Segurança Pública, não se sabia sequer quem era responsável pela escolta", confessa o criminalista Antônio Mariz de Oliveira. "Está provado que nada mudou. E ainda não foi criada uma guarda penitenciária". Desde a década de 80, portanto, um sistema judicial em frangalhos vem sendo espancado impunemente por governantes omissos, militares ineptos e juízes pusilânimes. Por descumprirem a lei, não foram julgados os delinqüentes que o STF agora libertou em nome da lei.

Onde a gente comum enxerga nove bombas ambulantes, as togas viram cidadãos que, como quaisquer outros, são merecedores de atenções constitucionais. Certo, concordou até o Ministério Público Federal. Certíssimo, aplaudiram os juristas renomados e os bacharéis de porta de cadeia. "O STF só cumpriu seu dever", concede a advogada Paula Rodrigues Branco. Funcionária do PCC, Paula continua irada com os quatro anos de cadeia curtidos "pelos rapazes". É assim que ela se refere a clientes que carregam nas costas prontuários de dar inveja a um Fernandinho Beira-Mar.

É de doutoras paulas que andam precisando outros 130 mil presos preventivamente há muito mais tempo que os 81 dias estabelecidos pela legislação. Aguardam julgamento, como os nove rapazes da doutora. Mas não são filiados ao PCC ou ao CV, e por isso não têm recursos financeiros para contratar bacharéis. Por falta de advogados, não têm recursos judiciais a apresentar a instâncias superiores. Por falta de recursos, não têm direito a sonhar com um habeas corpus.

Talvez não saibam direito o que é isso. Nem o que faz exatamente o STF.


Publicado originalmente na Gazeta Mercantil.


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