sexta-feira, 5 de setembro de 2008

TOCO Y ME VOY

No texto a seguir, Augusto Nunes apresenta e comenta a carta aberta que Maria Belém Adams escreveu às autoridades alfandegárias escocesas depois de ser interrogada, presa e repatriada sem qualquer razão. Belém é filha de Eduardo Bueno, o famoso Peninha, e da designer Ana Adams.


O império sumiu, ficou a arrogância

Augusto Nunes

Um agiota da Florença medieval trataria de oferecer-lhe, espontaneamente, empréstimos sem garantia. Um espião de filme americano não resistiria à tentação de transformá-la em confidente. O carcereiro do corredor da morte libertaria todo mundo se ela ponderasse que qualquer ser humano merece uma segunda chance. Nem mesmo ressabiados profissionais conseguiriam desconfiar de alguém com rosto de fada e sorriso de primeira comunhão, acreditaram até agosto os que conhecem Maria Belém Adams. É que eles não conheciam os funcionários a serviço de Sua Majestade no aeroporto de Edimburgo. Depois de interrogada por seis horas e detida por mais 16, essa doce gaúcha de 25 anos foi repatriada arbitrariamente, como conta o trecho abaixo reproduzido de sua "Carta aberta a uma alfândega fechada".

Faz pouco tempo que nos vimos, mas suponho que vocês não se lembram de mim. Provavelmente já esqueceram meu nome e meu rosto. Eu era apenas mais uma brasileira. Diferentemente de vocês, recordarei para sempre o dia em que tive um sonho abortado. Já no desembarque em Edimburgo, a abordagem deixou claro que vocês estavam dispostos a achar uma prova de que eu era culpada. Do que, ainda não sei. Mas ficou evidente a intenção de buscar algo que justificasse a proibição de entrar em seu país, e de ignorar as evidências de que eu não pretendia permanecer mais de 24 dias entre suas fronteiras.

Eu deveria estar mais bem vestida? Aparentar um ar de superioridade? Teria sido diferente? Agora não importa. Meus documentos, autênticos, provavam que minha permanência no Reino Unido seria curta. Queria apenas conhecer parte do país e de sua cultura, e voltar para casa com boas lembranças. Escolhi o mês de agosto por ser um período de efervescência cultural na cidade, repleta de visitantes atraídos pelo que supostamente é o maior festival de artes do mundo. E, mais importante ainda, porque tinha entrado em contato com uma artista que admiro, Lotte Glob, e planejava visitá-la na cidade escocesa onde mora há décadas.

Mundialmente respeitada pelos trabalhos com cerâmica, que é a minha atividade, Lotte está promovendo a exposição mais importante de sua vida. Encontrá-la também enriqueceria a minha tese de conclusão do curso de Artes Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Repeti essas informações. Mas vocês alegaram que os motivos não eram suficientes para estar em seu país!

Exausta pela viagem de 30 horas, fui interrogada por seis horas. A certa altura, vocês perguntaram se conhecia alguém na Escócia. Respondi que não. Outra minuciosa revista em minha agenda localizou um número de telefone de Edimburgo. Vocês ligaram e a mulher que atendeu disse que me conhecia. Tínhamos mantido um rápido contato pela internet, por recomendação de um amigo comum. Só poderia dizer que a conhecia depois de um encontro pessoal. Sem saber o que se passava, baseada nas boas referências que recebera a meu respeito, ela mencionou um vínculo que não existia.

Repeti essas explicações inutilmente. Como cães farejadores, vocês decidiram que essa contradição aparente era a prova que tanto procuravam. Em nenhum momento vocês se interessaram em saber quem sou. Eu tinha comigo cartas de apresentação dos professores da universidade federal onde completarei o curso neste ano, documentos da empresa que existe em meu nome, reservas de hotéis, dinheiro suficiente, cartão de crédito. E nada de ilegal na bagagem. Nada disso importava. Eu era uma carta marcada. Só faltava o pretexto para que fosse descartada.

Investi dinheiro, tempo e energia para chegar à Escócia, e fui tratada como criminosa sem nenhuma razão. Enquanto fiquei presa, rigorosamente vigiada, centenas de pessoas passaram sem que nenhuma pergunta fosse feita. Vocês perderam com uma pessoa honesta o tempo que deveria ser investido na busca de outras com más intenções. Não posso aceitar que uma pessoa em busca da ampliação dos seus horizontes, com coragem para perseguir seus sonhos, seja submetida a interrogatórios absurdos, levada num carro blindado para um centro de detenção e ali permaneça durante 16 horas, isso sem ter cometido delito algum, sem existir uma única prova que a incrimine.

Não esperamos que a alfândega do Reino Unido seja mais humana. Basta que mais competente e, principalmente, justa.

No fim do século 19, o engenheiro escocês Peter Adams chegou ao Rio Grande do Sul para chefiar a construção de uma ferrovia. Foi tão bem recebido que resolveu ficar para sempre em Novo Hamburgo. O velho Peter não poderia imaginar que, em 2008, uma jovem Adams seria tratada como meliante ao visitar o país de onde veio o trisavô.


Publicado originalmente no Jornal do Brasil


.

Nenhum comentário: