FRAGMENTOS
Vendo chover em Macondo
Setembro promete boas-novas. Ao menos costumava prometer. A iminência do fim do Inverno, não o Inverno do frio elegante, do vinho, do sobretudo e da lareira, mas o Inverno das sombras, dos temores de que o mundo por fim se converta nas eternas trevas a que parece condenado. A cada prenúncio de Primavera, acredita-se, que diabos, no ocaso das dores da vida, das dores de ser, de estar, de insistir em permanecer, do eterno suplício que é viver.
O solstício do Inverno, instante mais triste do ano, com seu escurecer absurdamente precoce, já vai longe agora. Os dias alongam-se, devagar ainda, como se acordando da grande ressaca da hibernação, mas enfim se esticam, espicham seus incertos e sinuosos braços, dispostos a alcançar o breu que se move em direção à linha de chegada da noite primaveril. Qual vestal empedernida, a linha recua, afasta-se, negaceia.
A boa-nova em breve andará nos campos, fazendo brotar o pendão recitado em velhas canções desbotadas por pulsações inúteis. Talvez viçosas rosas colombianas vermelhas sejam obrigadas a ceder lugar a roxas e emblemáticas orquídeas. Não faz diferença para um beija-flor, talvez faça para a vida ao redor. Na verdade faz para ele também, mas alguém tem de espalhar o pólen.
Tudo vale a pena, ainda que almas aturdidas acabem por esvaziar a intenção do poeta. Mas o que é poesia se não uma forma disfarçada de covardia emocional? Na impossibilidade de se viver, filosofa-se. Na ausência da completitude real, imaginação. O virtual alivia, mas só a vida sacia.
Em meio a chuvas impertinentes, na breve estiagem de meio de tarde, um casal de pombos pousa no parapeito da janela semi-aberta. Parecem felizes. Arrulham em cumplicidade. Observam, miram-se, dirigem ao redor um olhar de indisfarçável condescendência e então alçam vôo em direção ao infinito vazio camuflado de felicidade.
.
Um comentário:
Li como se fosse minha alma falando...
Postar um comentário