terça-feira, 3 de junho de 2008

REPLAY
Às terças-feiras abro espaço também para meus textos não inéditos, desde que de conteúdo atual




Ensaio sobre a violência

De acordo com a tradição cristã, o primeiro ato de violência da história foi cometido pelo próprio Criador, ao expulsar Adão e Eva do Paraíso. Aqui interessa menos a autenticidade do relato do que a perpetuação do mito através das gerações. Segundo a Bíblia, a mulher é condenada, então, a sentir as dores do parto e, o homem, a ganhar o pão “com o suor do próprio rosto”. O ser humano está só, abandonado à própria sorte. A violência primal perpetrada no Paraíso é seguida de outras igualmente representativas. Caim inaugura a violência familiar matando Abel. O Dilúvio ilustra o paroxismo da violência divina. A destruição de Sodoma e Gomorra revela a intolerância.

Quando os homens decidem construir uma torre tão alta que possa alcançar o céu, Deus decide puni-los fazendo-os falar vários idiomas. O embaralhamento da comunicação, além de inviabilizar o projeto, fomenta a criação de grupos distintos e incomunicáveis, de certa forma para sempre, o que torna o confronto inevitável. A mais essencial manifestação de violência divinal se dá em relação a Jesus. Apesar de seus apelos para que o Pai afastasse dele o cálice do sofrimento, Deus prefere não responder, atitude que condena o Filho à morte na cruz depois de uma série de sofrimentos atrozes. Não importam o objetivo ou as leituras bíblicas sobre o episódio, tampouco a crença, mas sim verificar sua gênese violenta.

Se a religião, na maior parte do tempo, funciona como um eficiente freio à maldade e ao crime, isso não impede que ocupantes de cargos na hierarquia do clero tenham, ao longo da história, tornado-se autores de massacres, ou cúmplices deles. As incontáveis vítimas da Inquisição ainda ardem na fogueira da memória cristã. Pessoas inocentes, trabalhadoras, chefes de família, mães exemplares, filhos promissores, tiveram seus sonhos interrompidos à base de tortura e morte dolorosa, sob a suspeita de ligações com o demônio, ou por terem proferido supostas blasfêmias.

As Cruzadas diferem da Inquisição por camuflar a carnificina em ato de guerra e por utilizar cidadãos comuns na promoção da barbárie. Ao contrário dos inquisidores, em tese obrigados pelo ofício, os cruzados estavam comprometidos apenas com a fé, combustível utilizado no extermínio de milhares de “não-cristãos”. Episódios como o Massacre de São Bartolomeu, ocorrido em 1572, no qual pelo menos três mil protestantes foram mortos por católicos num único ataque, viraram ícones da brutalidade referendada pela Igreja-Estado.

Violências protagonizadas por cavaleiros laicos, integrantes de ordens militares, não deixavam os religiosos tão à vontade. Sobretudo se a ameaça pairasse sobre eles próprios ou a classe dominante. O problema se agravava em tempos de paz, quando homens solteiros, entediados pela ausência de combate, circulavam perigosamente pelas cidades. A solução era mostra-lhes os caminhos da fé. Uma crônica religiosa escrita por volta do ano 1.000 de nossa era, citada por Georges Duby em Ano 1000, ano 2000/Na pista de nossos medos, é especialmente reveladora por considerar aceitáveis atrocidades cometidas contra os pobres:

“Se não quiserdes ser condenados, prestais juramento, engajai-vos, perante Deus e por vossa alma, a respeitar algumas proibições. Podeis matar-vos entre vós, mas não devereis, doravante, brigar nos arredores das igrejas, locais de asilo onde qualquer um pode refugiar-se. Não podereis brigar em determinados dias da semana, em memória à Paixão de Cristo. Nada de guerra na sexta-feira, portanto, nem no domingo. Além disso, não devereis atacar as mulheres, não as nobres, em todo o caso, nem os comerciantes, os padres e os monges.”

A sensação de desamparo de um crente ao perceber os desvios de conduta daqueles que lhe deveriam servir de guia espiritual pode conduzir a uma perplexidade capaz de transformá-lo num agente da violência. Se tais desvios lhe fogem ao alcance, ainda assim está sujeito ao risco, por osmose. O papel social assumido hoje pela Igreja em tantas partes do mundo, como no combate à miséria no Brasil ou o empenho do Vaticano na pregação da paz mundial – enquanto padres priápricos são perdoados pelo silêncio – ajudam na redenção de seu desempenho histórico e contribuem para devolver aos fieis parte desses referenciais. Mas é pouco.

O Estado é outro poderoso agente na formação de um indivíduo. Apesar de essa ascendência ser bem mais decisiva nos regimes totalitários, mesmo na democracia há regras a serem seguidas e punições a serem temidas. A mão do Estado sempre pesou sobre os cidadãos, mas foi o Século 20 que viu nascer o fenômeno do extermínio em massa, uma das manifestações mais contundentes da violência. “Há crimes de paixão e crimes de lógica”, afirmou Albert Camus em O Homem Revoltado. “O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes.”

Publicado em 1951, durante a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, o livro foi classificado como “de direita” e duramente atacado por um grupo de intelectuais franceses capitaneados pelo filósofo Jean-Paul Sartre. Foram necessárias décadas para que esta obra fundamental do pensamento moderno atingisse a redenção. Naquele momento, era politicamente incorreto abrigar sob o mesmo manto o genocídio nazista e os assassinatos do regime soviético.

O distanciamento histórico e a independência intelectual permitem perceber o quanto crimes políticos são crimes como quaisquer outros, e o quanto a doutrina não serve, de forma alguma, para justificar a carnificina, seja em campos de concentração na Alemanha ou nos gulags russos. O importante, em ambos os casos, é destacar o nascimento desta forma de violência sem precedentes, e o quanto o chamado homem comum pode ser manipulado pelo regime, ou estar predisposto a uma ação violenta, esperando apenas pelo chamado de um líder, ou pela sublimação provocada pela causa ideológica.

Os seis milhões de judeus mortos na Segunda Guerra Mundial não tiveram tal destino apenas por obra de um ditador ensandecido. Em Os carrascos voluntários de Hitler’, Daniel Jonah Goldhagen mostra o quanto o povo alemão na época tinha essa predisposição. O clássico bordão “cumpria ordens” não explica tudo. Somente a teoria do “mal radical” de Kant (radical no sentido verdadeiro, de raízes) é capaz de fornecer pistas sobre como um povo comum, igual a qualquer outro, pôde, ocasionalmente, assumir o papel de carrasco.

Os regimes totalitários, seja o de Adolf Hilter, seja o de Joseph Stalin, desenvolvem a capacidade de isolar o indivíduo, despojá-lo de objetivos pessoais, para depois dar-lhe uma causa e, com isso, agregá-lo à burocracia do Estado ou do partido. É mais ou menos pelo mesmo processo, mas de forma não programada, que se formam os bandos na Antigüidade, ou as gangues urbanas neste início de século. Desprovido de metas, o homem sente-se perdido em uma sociedade propiciadora da solidão e vai em busca de um grupo ao qual se integrar. Nos campos de futebol em São Paulo, nos bailes funk do Rio, em escolas por todo o país, jovens aparentemente normais transformam-se em feras capazes de matar um desconhecido, ou mesmo um suposto amigo, por motivos banais. Andar em bandos já foi a única forma de sobreviver nas florestas e cidades, e continua sendo uma maneira distorcida de se sentir seguro. Ao perceber em seu isolamento uma violência, o indivíduo responde a isso com a violência exercida em grupo, pela qual todos são responsáveis e, portanto, ninguém o é de fato.

“Este todo-mundo que não é perverso, que não tem motivos especiais, e justamente por isso é capaz de um mal infinito”, comenta, em relação aos extermínios, Hannah Arendt, uma das mais importantes teóricas da violência em todos os séculos, autora de obras memoráveis como As origens do totalitarismo e Sobre a violência. Disse-me uma vez Nádia Souki, psicanalista e mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, citando passagem de sua obra Hannah Arendt e a banalidade do mal’: “Os crimes totalitários não foram cometidos pelos perversos, mas pelos indivíduos privados de um motivo particular.”

A incidência do chamado crime comum, o assalto, o assassinato sem causas políticas, tende a diminuir devido ao temor provocado por regimes de exceção. Quanto mais forte o Estado, mais intimidador. Especialmente porque as formas de punição do autoritarismo costumam ser exemplares. Importa mais o efeito público que a correção do ato criminoso. Em Vigiar e Punir, Michel Foucault define a aplicação de suplícios (esquartejamento, apedrejamento etc) regidos por lei até a Revolução Francesa, como técnicas quase sempre desproporcionais ao delito, destinadas muito mais a satisfazer o desejo público de vingança do que a fazer justiça. No totalitarismo, a tese tem dupla-face: internamente, é caso de dar o exemplo, enquanto ao mundo exterior devem ser negadas as arbitrariedades.

A aplicação de um trote em estudantes recém-chegados à Universidade, qualquer que seja o grau da brutalidade empregada, será sempre um ato de violência. Submeter seres humanos à humilhação e ao medo, não importa se sob o pretexto da brincadeira, é também uma forma de iniciar o convívio sob o signo da hostilidade. Na constituição de turmas de jovens capazes de promover a violência sem um motivo aparente há muito da formação recebida em casa. A família converte-se, desde cedo, em elemento decisivo na trajetória futura de um ser humano, para o bem e para o mal.

O primeiro ato de violência na vida de qualquer pessoa ocorre involuntariamente e antes mesmo da integração à família. O nascimento é, em si, uma violência. O bebê é retirado do útero materno, no qual estava acomodado num ambiente escuro e quente, para a luz e o frio do mundo. Nasce entre sangue e dejetos. Em muitas vezes há o uso da força para facilitar a saída, e em outras ainda leva uma palmada. Roger Dadoun, em A violência/Ensaio acerca do homo violens, afirma que “inaugurada sob tal signo, a infância humana passa a ser o teatro de temíveis afrontamentos, conflitos inexpiáveis, onde se combinam num emaranhado literalmente desvairado, fonte de loucura, as violências internas constitutivas do próprio psiquismo e as violências externas exercidas sob múltiplas formas pelo ambiente.”

Ainda segundo o psicanalista francês, a escola não consegue reverter o potencial gerado por esta violência inaugural. “O sistema educativo apenas aplica próteses culturais, que se despedaçam na primeira oportunidade.“ É assim que, de repente, sem qualquer explicação mais forte, um homem típico das grandes cidades, tão “normal” quanto possível, pode se tornar um criminoso. Violência em família não significa, necessariamente, levar uma surra dos pais. Agressões verbais, ameaças, represálias, proibições injustas, castigos imerecidos, são todas formas de violência que jamais freqüentariam as manchetes, mas que contribuem para um processo cumulativo de revolta. Um dia, esta conta será zerada por meio de mais violência, e desta vez possivelmente em caráter mais agressivo.

Forjado em condições tantas vezes adversas, o ser humano até consegue obter certo equilíbrio, eventualmente precário, quebrável com facilidade por fatores inerentes à vida em sociedade. Fatores sociais como guerra, desemprego, queda de poder econômico, alteração de padrão de vida, migração por más condições de vida em determinada região, mudanças de emprego, bairro ou escola, rompem o equilíbrio interno da pessoa tornando-a agressiva, contra si mesmo e contra os outros.

Se a violência começa com o nascimento, termina com a morte. Ter o tempo de vida limitado é a maior violência psicológica com a qual um ser humano é obrigado a lidar ao longo da existência. Ter a vida tirada, ainda que “por causas naturais” é o supremo ato de violência da Criação.

As torturas e assassinatos cometidos nos porões da ditadura brasileira durante os Anos de Chumbo, os abusos do exército americano no Iraque, e antes disso no Vietnã e em tantas outras partes, o massacre dos sem-terra por PMs em Eldorado de Carajás, uma criança sendo atirada para a morte pela janela do apartamento, o pai escravizando e estuprando a filha, o filho submetido à tirania dos pais, o idoso colocado em uma fila interminável na tentativa de uma receber uma quantia irrisória depois de uma vida inteira de lutas, maridos subjugando esposas, brigas entre torcidas rivais, assassinato por causa de uma discussão no trânsito, contendas entre gangues, polícia brincando de bandido, cão selvagens passeando pelas ruas, guerras entre países, ou entre etnias, a fome, a discriminação, a falta de oportunidades iguais, o desemprego, são todas formas de violência que, embora às vezes diferentes na aparência, exibem a mesma origem de maldade e desrespeito pelo ser humano. A violência física assusta mais por provocar seqüelas imediatas e irreversíveis.

A “limpeza étnica” dos sérvios contra os albaneses em Kosovo não diferiu na essência do holocausto judeu (e, em menor escala, cigano) na Segunda Guerra, ou dos massacres de armênios pelos turcos, tasmanianos pelos ingleses, ou índios por brancos colonizadores em várias partes do mundo. Construir uma cultura de amor à vida é o desafio que as sociedades perseguem há séculos. É decididamente incerto se um dia o ser humano logrará êxito em tal empreitada. Famílias bem estruturadas, Estados que tratam seus cidadãos com dignidade, legislação ágil e justa, polícias bem equipadas e treinadas para preservar a vida, e não tirá-la, são ingredientes indispensáveis no combate à violência. Mas, ainda assim, uma questão primordial permanecerá: como desalojar o mal que se esconde no coração dos homens?




CRÉDITOS DAS FOTOS E ILUSTRAÇÕES
A Expulsão do Paraíso, de Charles Joseph Natoire (1700-1777)
Genocídio na Segunda Guerra Mundial - Museu do Holocausto
Hanna Arendt - Divulgação
O Triunfo da Morte - Pieter Bruegel (1525 - 1569)

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