quarta-feira, 2 de julho de 2014

GRANDES NOMES
John Hersey, o patriarca do new journalism


Primeiro, leiam o início de Hiroshima:


“No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da manhã, hora do Japão, quando a bomba atômica explodiu sobre Hiroshima, a srta. Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do Leste da Ásia, acabava de sentar-se a sua mesa, no departamento de pessoal da fábrica, e voltava a cabeça para falar com sua colega da escrivaninha ao lado. Nesse exato momento o dr. Masakazu Fujii se acomodava para ler o Asahi de Osaka no terraço de seu hospital particular, suspenso sobre um dos sete rios deltaicos que cortam Hiroshima; a sra. Hatsuyo Nakamura, viúva de um alfaiate, observava, da janela de sua cozinha, a demolição da casa vizinha, situada num local que a defesa aérea reservara às faixas de contenção de incêndios; o padre Wühelm Kleinsorge, jesuíta alemão, lia a Stimmen der Zeit, revista da Companhia de Jesus, deitado num catre, no terceiro e último andar da casa da missão de sua ordem; o dr. Terufumi Sasaki, jovem cirurgião, caminhava por um dos corredores do grande e moderno hospital da Cruz Vermelha local, levando uma amostra de sangue para realizar um teste de Wassermann e o reverendo Kiyoshi Tanimoto, pastor da Igreja Metodista de Hiroshima, parava na porta de um ricaço de Koi, bairro oeste da cidade, para descarregar um carinho de mão cheio de coisas que resolvera transferir para ali por temer o maciço ataque dos B-29, que a população aguardava. Uma centena de milhares de pessoas foi morta pela bomba atômica, e essas seis são algumas das que sobreviveram. Ainda se perguntam por que estão vivas, quando tantos morreram. Cada uma delas atribui sua sobrevivência ao acaso ou a um ato da própria vontade – um passo dado a tempo, uma decisão de entrar em casa, o fato de tomar um bonde e não outro. Agora cada uma delas sabe que no ato de sobreviver viveu uma dúzia de vidas e viu mais mortes do que jamais teria imaginado ver. Na época não sabiam nada disso.”

Um ano depois da hecatombe nuclear, a prestigiada revista The New Yorker enviou um repórter a Hiroshima. Embora ainda jovem, John Richard Hersey era um veterano correspondente de guerra. Nascido em Tienstin, na China, em 17 de julho de 1914, na alvorada da Primeira Guerra Mundial, filho dos missionários americanos Roscoe e Grace Baird Hersey, mudou-se com a família para os Estados Unidos aos dez anos de idade. Frequentou a Universidade de Yale e fez pós-graduação em Cambridge. Em 1937, aos 23, arranjou emprego na Time. Na Segunda Guerra Mundial esteve no front na Europa e na Ásia – cobriu a célebre batalha de Guadalcanal –, de onde mandava reportagens para a Time, a Life e a New Yorker. Naquele Verão (no Hemisfério Norte) de 1945, quando completava 32 anos, Hersey foi escalado para realizar um trabalho que revolucionaria não apenas sua vida e a da publicação, mas a história do jornalismo.

Hersey reconstituiu o instante da tragédia e seus desdobramentos nos tempos seguintes a partir dos depoimentos de seis sobreviventes. Ao examinar os originais, Harold Ross, o fundador da revista, e William Shawn, o editor, viram-se diante de um material esplendoroso. Hersey não apenas retratara com maestria o holocausto nuclear de Hiroshima e contara o drama daquela gente com incrível requinte de detalhes. Ele fora muito além.


Ao contrário dos rebuscados textos jornalísticos de então, na maioria permeados de adjetivação, floreios e rococós, o artigo de Hersey primava pela objetividade e pela prosa escorreita, na qual os substantivos reinavam absolutos sobre escassos adjetivos, e com pouca interferência do autor. Ele não tentou forçar a barra para tornar a narrativa dramática, e sim deixou os personagens contarem a história. Isso mais do que bastava para emocionar. Os editores não tiveram dúvidas de que estavam diante de um trabalho jornalístico portentoso e inovador, não só na linguagem, mas também na forma. Hersey aliara a objetividade jornalística aos conceitos da narrativa literária como ninguém jamais o fizera. (Leia a continuação clicando no link abaixo).
O texto de 31.347 palavras ficara imenso para os padrões de uma simples reportagem, mas aquela decididamente não era uma simples reportagem. E, como se costuma dizer nas redações, nenhum editor que se preza desperdiça texto bom. Assim, mandaram derrubar todas as outras matérias e dedicaram integralmente a edição de 31 de agosto de 1946 ao texto de Hersey, com tremenda repercussão. Os 300 mil exemplares a 15 centavos se esgotaram rapidamente, e teve quem pagou até 20 dólares por uma cópia. O texto foi publicado em vários países, com os direitos revertidos para a Cruz Vermelha. Logo saiu o livro, com tiragem inicial de milhões de cópias.

Ainda que conscientes da qualidade da reportagem, e felizes com o sucesso, dificilmente os editores, ou o próprio Hersey, poderiam ter a dimensão que ela atingiria. Uma resenha em The New York Times dava a pista: “Quando esse artigo de revista aparecer em formato de livro, os críticos dirão, no estilo deles, que ele é um clássico. Mas ele é muito mais do que isso”. De fato, o livro é um clássico, sendo reeditado até hoje com enorme êxito (o autor retornou a Hiroshima 40 anos depois para escrever o capítulo final). E, de fato, é muito mais do que isso.

Hersey, que ganhava a vida cobrindo pura história, fez ele próprio história. Hiroshima é considerada a melhor reportagem já realizada e peça inaugural do new journalism (ou jornalismo literário), escola que nos legaria nomes como Gay Talese, Truman Capote, Tom Wolfe ou Norman Mailer. Talese, um gigante deste clube restrito, afirmou certa vez: “O novo jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é ficção. É, ou deveria ser, tão verídico como a mais exata das reportagens, buscando, embora, uma verdade mais ampla que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis, o uso de citações, a adesão ao rígido estilo mais antigo. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem e consente que o escritor se intrometa na narrativa se o desejar, conforme acontece com frequência, ou que assuma o papel de observador imparcial, como fazem outros, eu inclusive.”

Um dos “segredos” de Hersey, e dos grandes ícones do new journalism, além evidentemente, da forma narrativa adotada, foi perceber o óbvio, como costumam fazer os gênios: a tragédia se tornava ainda mais pungente quando as vítimas tinham nome, rosto, idade, profissão e um projeto de vida - as mortes e os sofrimentos de milhares, por mais que dramáticos, se não fossem particularizados muitas vezes caíam na frieza da mera estatística. Sobretudo, que se lhes dessem voz, retirando-se, tanto quanto possível, de cena, como ensinou Talese, num desapego de ego difícil para muitos jornalistas.

            Hersey publicou ainda textos clássicos sobre assuntos variados, como o Gueto de Varsóvia, a falta de leitura na escola secundária, crimes cometidos pela polícia contra os negros em Michigan nos tumultos de 1968, entre outras obras premiadas e foi professor de redação e literatura. Morreu em sua casa em Key West, na Flórida, em 24 de março de 1993, aos 78 anos, deixando a esposa, Bárbara, cinco filhos, seis netos, milhões de leitores encantados e gerações de jornalistas agradecidos.

(Publicado originalmente na revista Press)

Legenda: Hersey, então correspondente da Time, dirige um Jeep do exército americano em local não identificado
Crédito da foto: Roger Higgins/Library of Congress-USA


A gestação do inferno

A Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, encerrara-se na Europa em 7 de maio de 1945, com a rendição da Alemanha – a Itália já o fizera em 8 de setembro de 1943 –, legando ao continente o saldo de 30 milhões de mortes, incluindo as vítimas de campos de concentração. Dos integrantes originais do Eixo, apenas o Japão seguia lutando. Os Aliados, sob a liderança dos Estados Unidos, haviam intensificado os ataques aéreos. Em 9 de março, em uma única noite, 100 mil pessoas perderam a vida durante um bombardeio lançado por 334 aviões B-29, que se estenderia por dez dias e incluiria as cidades de Nagoya, Osaka e Kobe.

O presidente Franklin Delano Roosevelt morrera em 12 de abril, sem assistir à capitulação das tropas de Adolf Hitler. Caíra no colo do vice Harry Truman a missão de por fim à guerra. Os EUA examinavam a possibilidade de utilizar a bomba atômica, ainda em fase de desenvolvimento, como forma de abreviar o embate, com economia de vidas americanas e de muitos milhões de dólares. Em 29 de julho, os japoneses rejeitaram um ultimato americano.

Desde o final de abril, o 509º Grupamento Aéreo dos EUA se encontrava em Tinian, pequena ilha do Arquipélago das Marianas, no Pacífico. Seu comandante, o coronel Paul Tibbets Jr, de 30 anos, preparava-se para a eventual missão de lançar o artefato nuclear. Só ele na ilha tinha tal informação. Tibbets escolheu um B-29, ao qual batizou de Enola Gay em homenagem a sua mãe. O bombardeiro partiu de Tinian por volta da 1h45min de 6 de agosto carregando em seu ventre a primeira bomba atômica da história, apelidada de Little Boy (Garotinho), com 11 tripulantes e escoltado por três aeronaves destinadas a cientistas, meteorologistas e observadores.

Naquela manhã de agosto, a cidade de Hiroshima já tivera sua população reduzida de 380 mil para 245 mil habitantes, na maioria mulheres, crianças e idosos, uma vez que os homens adultos estavam, em sua maioria, na frente de batalha. Little Boy, com seus 3,2 metros de comprimento, 74 cm de diâmetro e 4,3 toneladas causou uma explosão semelhante à de 12 mil toneladas de dinamite. Em segundos, 70 mil pessoas morreram, número que passaria dos 200 mil nas semanas seguintes. Mais de 90% das construções foram abaixo, raios de calor de 4.000ºC matavam e queimavam os habitantes, incêndios se espalhavam por quilômetros, enquanto uma nuvem de poeira e fogo em forma de cogumelo se elevava ao céu.

Uma segunda bomba atômica, Fat Man (Homem Gordo, em homenagem ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill), seria despejada sobre a cidade de Nagasaki três dias depois. Em 2 de setembro, o Japão assinou a rendição.


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